A medula da vida espiritual

Quando presidente da Ação Católica de São Paulo, nos idos de 1940, Dr. Plinio procurou atender — conforme ele próprio afirmava — à primeira obrigação de um dirigente de associação religiosa, isto é, o cuidado pela santificação de seus membros. Nesse intuito, redigiu um memorando contendo judiciosas orientações de vida espiritual, das quais transcrevemos a seguir alguns excertos.

 

O  homem, criado por Deus no estado de justiça original, foi enriquecido da graça santificante e de outros valiosos dons que davam à sua natureza uma harmonia tal que ele via claramente a vontade divina e a cumpria com toda a facilidade, segundo apenas os seus pendores espontâneos.

O pecado original quebrou a harmonia interior do homem

A lei natural — inscrita por Deus na consciência de cada um, como manifestação da vontade d’Ele — era perfeitamente legível. Por isso nossos primeiros pais tinham as potências da alma em perfeita ordem, de tal forma esclarecida pela revelação, que a sensibilidade estava subordinada inteiramente à vontade, e esta à inteligência; a prática da lei, em vez de penosa era uma fonte de felicidade, pois tudo cooperava no homem para que ele atingisse plenamente o seu fim.

Entretanto, pelo pecado original foi quebrada esta harmonia tão maravilhosa. Como castigo da rebelião, retirou Deus o poder absoluto da inteligência sobre a vontade, e de ambas sobre a sensibilidade. Assim o homem se viu em luta contra a rebelião ora brutal das paixões, ora insidiosa das más inclinações, tornando‑se tantas vezes escravo de umas e de outras. Igualmente perdeu o domínio absoluto sobre a natureza criada, de que fora o rei, e os seres animados e inanimados que a compõem revoltaram‑se contra ele. Quebrou-se, desse modo, aquela harmonia resultante da subordinação do mundo, com suas forças e virtualidades, à inteligência superior do homem. A lei natural perdeu, na consciência humana, a primitiva nitidez; a inteligência ficou alterada em sua lucidez cristalina de outrora; e a vontade desviou‑se daquela retidão admirável que a inclinava sempre para o verdadeiro bem. Sobretudo, perdeu o homem a graça e a amizade de Deus, e o Céu se fechou para ele.

Com o pecado entra a contradição no mundo

O pecado original, pela contradição abominável que opunha à majestade divina, fez entrar a contradição no mundo. O tédio, o cuidado, a dor, a angústia e a morte se desdobraram sobre a Terra; e o inferno se abriu, como suprema contradição, para triturar, sem aniquilar, os prevaricadores, que se tornaram filhos da contradição do pecado.

Por outro lado, o desejo de felicidade, que é tão radical no homem que seria mais fácil destruir o ser humano do que extirpá‑lo, este desejo voltou‑se com todo o seu peso para muitas coisas que não podem dar a felicidade. E os caminhos que conduzem à bem‑aventurança, tão sequiosamente almejada pelo coração humano, tornaram‑se espinhosos e repugnantes, de tal forma que “todo o que procurar salvar a sua vida, perdê‑la‑á; e todo o que a perder, salva‑la‑á” (Lc 17, 33).

A vida espiritual, esforço para nos unir à vontade divina

Nesta situação aflitiva, valeu‑lhe a misericórdia de Deus, que não poupou o seu próprio Filho, imolando‑O na Cruz pela nossa salvação. Entretanto, a graça, que tão abundantemente defluiu do Calvário, não alterou o quadro das conseqüências do pecado original no homem, senão neste ponto: que valorizou e tornou viável o esforço humano em vista da recomposição da harmonia interior e da subordinação da sua vontade à  divina, e, por aí, reconquistarmos o Céu.

Ora, estando comprometidos, em nós, os traços anteriormente firmes, com que estava gravada a lei natural, dignou‑se Deus de manifestar novamente a sua vontade pela revelação dos Mandamentos, que se aplicam a todos os homens, indistintamente. Além disso, pelos conselhos evangélicos, revelou o que cada um deve fazer, em particular, seguindo a inspiração do Espírito Santo, para obedecer os desígnios de Deus a seu respeito. A vida espiritual consiste exatamente nesse esforço penoso para conformar nossas disposições internas e nossas ações com a vontade de Deus, o que, antes do pecado original, era uma fonte de felicidade, como já ficou dito.

O jogo das tendências no homem decaído

Há, no homem, tendências boas ou más da natureza, disposições viciosas ou virtuosas adquiridas, e atos bons ou maus, que seguem as tendências ou as disposições. É de notar que as disposições virtuosas podem ser o aproveitamento meritório de uma boa tendência, como as viciosas podem ser o agravamento culposo de tendências más. É possível, porém, que não seja assim, havendo, neste caso, maior culpa ou mérito.

As tendências más podem pertencer à vontade, como o pendor para o orgulho, por exemplo, ou à sensibilidade, como a tendência para a luxúria. Para que haja ato mau, entretanto, é necessário que a vontade ou ceda à própria inclinação defeituosa, ou pactue com os movimentos inferiores da sensibilidade desordenada, como que os assimilando a si própria. A repetição de atos maus desenvolve as tendências más da vontade, aumenta a desordem da sensibilidade, e, por fim, habitua a vontade a transigir com as sugestões perversas desta última, até surgirem os vícios, em toda a pujança escravizadora.

A perigosa deformação da mentalidade

Este procedimento imoral tem ainda um último e derradeiro fruto de iniquidade. A vontade não pode agir sem a colaboração da inteligência, pois que a ação humana não se produz sem uma razão. De fato, ninguém faz alguma coisa conscientemente sem um motivo apresentado pela razão, qualquer que seja seu valor. Portanto, o mau proceder conspurca a inteligência, pois chega a forçar esta nobre faculdade muitas vezes a apresentar como bom e conveniente o que é mau e perverso.

Ora, esta intervenção violenta, quando muitas vezes renovada, acaba por deformar a inteligência, que de si mesma é generalizadora; e por aí, ela pode obliterar‑se de tal modo que só muito penosamente chegue a compreender certas verdades e a se desvencilhar de certos erros. A pessoa que assim deforma a sua inteligência concebe idéias ou teorias falsas, ou, ainda, adquire uma mentalidade, isto é, uma atitude fundamental de ver e julgar as coisas, que falseia todos os valores. Numa mentalidade há princípios e teorias implícitos, que podem nunca vir a ser explicitados, mas que freqüentemente pesam nos juízos e nas resoluções. Por isso, nada há tão perigoso como uma mentalidade deformada, pois nisso consiste o “desregramento do espírito” de que fala o Evangelho (Mc 7, 22). É o oposto da sabedoria, e, no fundo, é o gosto das coisas do mundo, que se opõe ao gosto das coisas celestiais.

Esta mentalidade defeituosa também pode ser contraída pela complacência íntima e sistemática aos atos maus de outras pessoas, atos estes que lisonjeiam as nossas más tendências e disposições. A causa é análoga à referida quanto aos nossos próprios atos.

As más tendências da natureza, conseqüência do pecado original, são o princípio do mal em nós, e quase sempre o ponto atingido pelas tentações do demônio e do mundo. Podem ser dominadas, com relativa facilidade. A disposição viciosa, pelo contrário, já representa o domínio do mal, e a prática do bem, que se lhe opõe, exige uma grande luta. Porém, a pessoa portadora de mentalidade deformada já não luta, pratica o mal que se refere ao defeito de sua mentalidade, como se fora a mais natural e racional das coisas.

Falta de reflexão, doença do mundo moderno

Diz o Santo Padre Pio XI, em sua Encíclica sobre os Exercícios Espirituais de Santo Inácio(1): “O mal gravíssimo de que enferma a nossa época, que é a fonte e origem de todos os males de que se queixam os homens de reto juízo, é a falta de reflexão”. Para curar este mal é necessário forçar “o nosso espírito a observar atentamente os pensamentos, as palavras e as ações e a penetrar intimamente na nossa alma”.

De fato, infelizmente é imenso, hoje em dia, o número das pessoas que moldam a sua atividade exclusivamente ao sabor das circunstâncias exteriores, e não têm o hábito, e quase nem têm a faculdade de se observar, de julgar‑se a si próprias e de corrigir as suas tendências e disposições interiores desregradas.

Importa ao homem ver, julgar e agir dentro de si mesmo

Entretanto, a ninguém é possível obter uma verdadeira conformidade com a vontade divina, que, como dissemos, é o único meio do homem atingir a perfeição e a felicidade, sem o hábito de ver, julgar e agir dentro de si mesmo. Conforme se viu da Encíclica anteriormente citada, disso depende a cura de todos os males modernos. Ora, o mal não é outra coisa senão a desconformidade com os desígnios de Deus, que jamais cessa de querer o verdadeiro bem.

Além disso, as pessoas que se deixam levar exclusivamente, ou quase, pelos atos exteriores, se expõem a contaminar‑se, insidiosamente, pela corrupção do mundo, que é o principado de Satanás (Jo 16, 11), e a cair na chamada “heresia das obras”, mesmo quando querem fazer o bem. Neste sentido, acrescenta a Encíclica citada: “A frivolidade contínua e febril que se prende às coisas exteriores …. enerva e debilita nos corações os mais nobres ideais e de tal modo os envolve nas coisas terrenas e transitórias que mal os deixa pensar nas verdades eternas, nas leis divinas e no próprio Deus, que é o único princípio e fim das criaturas”.

Porém, o hábito salutar de ver, julgar e agir dentro de si mesmo, fornece um auxílio eficaz para as faculdades humanas, de modo que, neste combate insigne de espírito, a mente se acostuma a avaliar e a pesar, no seu justo valor, todas as coisas; a vontade se robustece com firmeza; os desejos insaciáveis comprimem‑se com sensatos conselhos; a ação da vida humana unida à meditação conforma‑se com uma norma reta; enfim, a alma atinge a sua nobreza e excelência, como se lê tão belamente numa comparação do livro Pastoral do pontífice São Gregório: “O espírito humano, à semelhança da água de um tanque, se represada, aumenta de volume e sobe para o céu donde veio; mas, aberta, perde‑se, espalhando‑se inutilmente sobre a terra”.

Assim sendo, nesse hábito está a medula da vida espiritual(2).

 

1) Encíclica Mens Nostra, de 20 de dezembro de 1929.

2) Outros tópicos desse importante memorando redigido por Dr. Plinio foram publicados nos números 38 e 39 desta revista (maio e junho de 2001).

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