Levaremos a luta até à vitória

Alguns meses antes de sua morte, ao narrar certos episódios de sua vida, Dr. Plinio afirma: “Ainda na minha infância, senti a Revolução em pé contra mim como uma hiena, e compreendi que a salvação de minha alma e o futuro de todo o mundo estavam arriscados se essa hiena não fosse derrubada; resolvi então combatê-la. Custasse o que custasse, com a proteção de Nossa Senhora, eu haveria de lutar contra ela e a Santíssima Virgem me daria a vitória”.

 

Quando eu era menino, entre sete e dez anos, havia no meu quarto, além de uma estampa com o Sagrado Coração de Jesus, um quadro bonito representando Nossa Senhora, não me lembro sob que invocação.

Dificuldade com a devoção a Nossa Senhora

Mas a minha devoção, por causa do exemplo de mamãe, ia toda para o Sagrado Coração de Jesus. Embora eu a visse rezar também para a Santíssima Virgem, por uma espécie de relacionamento especial que ela possuía para com o Divino Filho d’Ela, Nosso Senhor Jesus Cristo, mamãe me ensinava a rezar muito ao Sagrado Coração de Jesus. Ela falava menos de Nossa Senhora e do Imaculado Coração de Maria.

E formou-se em mim – menino, bobinho – um estado de espírito pelo qual eu tinha uma espécie de dificuldade com a devoção a Nossa Senhora. Compreendia, achava bonito, mas tinha uma espécie de objeção contra aquilo. Uma objeção de mau espírito, porque no fundo dizia o seguinte: “Reza-se demais para Nossa Senhora. Devia-se orar menos para Ela e rezar mais para Jesus Cristo”, o que me fazia orar pouco para Ela. É uma péssima disposição de espírito.

Eu não sabia que a Santíssima Virgem misericordiosamente me reservava um caminho especial nas vias d’Ela, de tal maneira que mais tarde – em virtude das circunstâncias que vou relatar daqui a pouco – a minha vida acabou sendo um ato de devoção contínua a Nossa Senhora e, por meio d’Ela, a Nosso Senhor Jesus Cristo.

Os fatos se passaram do modo mais inesperado possível. No Colégio São Luís, onde eu estudava, os padres distribuíam a cada aluno, todo mês, um boletim no qual constava uma nota em cada matéria lecionada. A primeira matéria mencionada, a muito justo título, era Religião e depois vinham as outras.

Em cada matéria havia dois quadradinhos especiais: um se referia à aplicação e outro ao comportamento. A nota de aplicação visava premiar o aluno que aprendia bem, ou censurar o que não fazia esforço para aprender, sendo relaxado e preguiçoso. A de comportamento considerava a conduta do aluno durante a aula: se conversava, dava risada do professor, atrapalhava por meio de provocações e brincadeiras os outros colegas.

Os alunos deveriam levar os boletins para os seus pais. Em geral a distribuição era feita nas sextas-feiras à tarde. Na segunda-feira, o aluno tinha que trazer de volta o boletim assinado pelo pai, e o colégio o arquivava.

Minha conduta na aula era boa e em geral as notas eram elevadas, até bem elevadas. Quanto à aplicação, havia uma diferença. Certas matérias me interessavam muito, então dessas eu era um aluno bem bom. Religião, História, Francês, Português eram matérias de que eu gostava e me aplicava. Mas em Geografia, Matemática, Geografia do Brasil e outras coisas dessas, eu recebia notas menos altas porque não estudava. Eu tinha birra dessas matérias, não gostava de estudá-las e concentrava o melhor do meu esforço naquelas que apreciava.

Mas mesmo nas matérias das quais eu não gostava as notas de aplicação eram suportáveis. Em comportamento, sendo um aluno muito calmo, tranquilo, disciplinado, graças a Deus eu tirava dez em todas as matérias, que era a mais alta nota.

O homem vale pelo seu caráter

Quando eu chegava em casa, Dona Lucilia estava à minha espera, porque ela já sabia que aquele era o dia da distribuição do boletim. Ela me perguntava:

— Filhão, você trouxe seu boletim?

Eu o tirava da minha pasta e entregava-lhe tranquilo porque já tinha visto as notas e sabia que tudo estava bom. Ela lia com atenção, depois em geral me beijava e fazia um comentário de uma matéria ou outra:

— Matemática está muito baixa. Veja se você levanta essa nota no mês que vem. Você não quer apreender Geografia do seu país? O que é isto?

Eu dava uma saída qualquer e percebia que ela não fazia uma questão fechada.

Ela às vezes me dizia:

— Eu fico especialmente contente por causa da nota dez de comportamento que você sempre tem. Você quer saber por quê?

Eu dizia naturalmente que queria, e ela me dava sempre a mesma explicação:

— Ninguém tem culpa de ser burro, tem culpa de ser ruim. Um aluno que tem nota baixa de comportamento não é burro, é ruim, não gosta da ordem, da disciplina, do esforço. Agora, um aluno que tem nota baixa de estudos significa que é burro, ele não tem culpa de não aprender aquela matéria, não dá para aquilo. Eu prefiro mil vezes ter um filho burro, mas bom, do que um filho ruim, mas inteligente, porque o homem vale pelo caráter. A inteligência é uma coisa de valor, mas secundária. Sem inteligência se vai para o Céu, sem caráter não.

Eu ouvia aquilo que me era dito com muito afeto e achava que ela tinha razão. Ela fazia como se não soubesse se eu era inteligente ou não. E acrescentava:

— Se você vier a dar um homem burro não tem culpa, está perdoado desde já, nem tenho o que perdoar. Mas se der um homem ruim será diferente; com sua mãe homem ruim não passa.

Uma nota baixa em comportamento

Certo dia, após a distribuição dos boletins, eu abri o meu e verifiquei que as notas estavam razoáveis. Entretanto, a de comportamento na matéria Geografia era péssima, seis, muito abaixo do que Dona Lucilia toleraria. Se uma nota de comportamento fosse nove, ela toleraria, mas com uma observação: que isso não se repita; mas seis ela não toleraria.

Olhei aquilo e fiquei pasmo. Pensei: “Eu não fiz nada na aula de Geografia, não tenho culpa nenhuma, isso é uma injustiça ou um engano de quem copiou essas notas. Mamãe agora vai ficar indignada e não sei o que vou fazer. Devo tirar essa nota do boletim”.

Aí veio a criancice, a imbecilidade. Cogitei: “Preciso passar uma água em cima dessa nota seis.” Depois eu refleti: “Mamãe verá que passei água e vai perguntar o que eu quis esconder.” Como estava chovendo muito, pensei: “Vou lá fora, abro o boletim, cai água da chuva em cima e depois direi a ela: ‘Mamãe, eu quis ler o boletim na chuva e pingou água na nota de Geografia, como em outras partes do boletim’; e assim tapeio a coisa”.

Fui para a chuva, mas houve algo incrível: chovia em torno da nota seis, porém nenhuma gota de água caía em cima do seis. Perdi a paciência, esperei cair uma gota grande de água e com um dedo molhei resolutamente a nota seis. Aí verifiquei que ficou uma porcaria, ela veria mesmo e eu teria que lhe dar explicações.

E como diz a Escritura “abyssus abyssum invocat” – quer dizer, um abismo atrai outro abismo, um erro atrai outro erro, uma má ação atrai outra má ação –, resolvi escrever dez em cima do seis com a minha letra. Ela estava farta de conhecer minha letra e veria que era o auge da infantilidade e do não saber fazer as coisas.

“Prefiro tudo na vida a ter um filho falsário”

Quando chego em casa, ela, com seu afeto habitual, indagou:

— Filhão, você tem seu boletim aí?

— Tenho.

— Deixe-me ver.

Entreguei-o fechado. Eu costumava entregá-lo aberto para ela.

Ela abriu e perguntou:

— O que é isto aqui?!

— Mamãe, caiu água.

— Não me venha com essa história. Aqui em cima você escreveu dez. O que tinha embaixo? Por que você apagou o que estava embaixo?

Eu disse:

— Mamãe… tinha seis.

— Ah?! O que você fez para seu professor de Geografia lhe desse seis?

— Não fiz nada, mamãe, mas saiu essa nota. Não querendo aborrecer a senhora, eu arranjei um jeito de pôr uma nota que a deixasse contente; mas sabia que tinha feito mal.

Mamãe ficou indignada e tirou logo uma conclusão cujo verdadeiro alcance eu não peguei na hora. Ela disse:

— Prefiro tudo na vida a ter um filho falsário.

Ela pronunciou a palavra “falsário” de tal maneira que eu senti, no modo de ela dizer, sem poder compreender bem, todo o mal que existe na falsificação.

No meio de casos publicados nos jornais e contados na família, eu já tinha ouvido falar de falsário, qualificado nas conversas, como por toda parte se qualifica, como um crime realmente dos mais nocivos, mais condenáveis e, nessas condições, como uma coisa que rebaixava muito o homem.

Naturalmente não se tratava de falsário de nota de colégio, eram falsários que falsificavam cheques de banco e coisas dessas, quer dizer, crimes de prender na cadeia, uma coisa muito mais séria, muito mais forte.

Mas, enfim, ela disse “falsário” e toda aquela censura do falsário caiu em cima de mim. E acrescentou:

— Você fique sabendo o seguinte: na segunda-feira seu pai irá ao Colégio São Luís, vai mostrar ao padre o que você fez e pedirá para verificar, nos assentamentos do colégio, qual é a sua verdadeira nota. Se foi uma nota errada que copiaram mal, você está perdoado; mas se de fato a nota real é seis, você não vai ficar mais um dia em São Paulo. Eu vou mandar você para o Colégio do Caraça.

Eu fiquei pasmo:

— Longe de casa, mamãe?

— Sim, senhor. Eu não quero ter falsário perto de mim.

Eu caí em vários abismos. Para mamãe não me querer mais perto dela, pode-se imaginar o que isso significava, era uma coisa horrorosa!

Ela, ao mesmo tempo, me disse que esse Caraça era uma espécie de penitenciária para crianças, que só meninos meio criminosos é que iam parar lá. Não correspondia à verdade, pois era um dos melhores colégios do Brasil. Mas naquele tempo as comunicações eram mais difíceis, as pessoas estavam menos informadas do que hoje e ela tinha esse conceito errado a respeito do Colégio do Caraça.

Ela me disse:

— Vou mandá-lo para lá e você vai ficar um ano sem me ver e sem que eu possa vê-lo. Não pense que vou visitá-lo, porque mãe de falsário… eu não quero saber disso.

Cada vez que ela dizia uma coisa dessas, que contrastava com o carinho requintadíssimo e dulcíssimo com que ela me tratava, eu me sentia mais achatado e mais esmagado pelo meu próprio delito: “Falsário, que coisa horrorosa!” Eu, sem saber bem o que isso significava, me sentia um falsário.

Paralelamente com isso eu fiz uma outra ação, a qual não tenho razão para contar aqui, que foi uma ação má. Quer dizer, infelizmente eu estava atravessando dias ruins. Mamãe não sabia dessa ação. Se ela viesse a saber, eu não sei onde iria parar.

Missa na Igreja Sagrado Coração de Jesus

Mamãe pediu a papai para vir falar com ela na minha presença. Explicou-lhe o acontecido e papai naturalmente também não gostou nada do que eu fizera. Combinaram que ele iria na segunda-feira – no primeiro dia útil, portanto – ao Colégio São Luís para perguntar o que havia.

Passou-se com isso a sexta-feira, o sábado – triste e aborrecido para mim. No domingo resolvi ir à Missa na Igreja do Coração de Jesus. Estava com pouco sono e acordei-me cedíssimo, quando costumava despertar tarde aos domingos. Levantei-me e fui sozinho à Missa, sem mamãe, nem papai, nem minha irmã, nem ninguém.

Quando cheguei à igreja, esperava encontrar junto à imagem do Sagrado Coração de Jesus um banco para me ajoelhar e assistir à Missa. Mas notei uma cena inteiramente diferente.

O Colégio do Coração de Jesus é colossal, toma as quatro faces de um quarteirão muito grande. Naquele tempo era um internato enorme, não sei quantos meninos cabiam ali. Eles estavam entrando na igreja a fim de assistirem à Missa, a qual era obrigatória para todos. Eles entravam em fila cantando e iam ocupando os lugares nos bancos.

Eu vi logo que quase todos os bancos estavam ocupados e que não haveria nenhum livre, pois os padres fariam sair do banco qualquer menino que não fosse do colégio para dar lugar aos alunos.

Senti-me rechaçado por todos os lados, por Deus e pelos homens: “Tudo me acontece mal, eu andei mal em dois pontos, sou um falsário, é uma coisa horrorosa, vou-me espremer neste canto da nave lateral – do lado direito de quem entra na igreja – e aqui vou ficar bem no fundo. Neste lugar a misericórdia de Deus ainda olha para um miserável falsário que aqui pode rezar durante a Missa.” Coloquei-me lá.

Os meninos começaram a cantar, o padre entrou, iniciou a celebração da Missa e as coisas tomaram seu caminho normal. Por causa das colunas, eu não conseguia ver o padre e acompanhar seus movimentos; levantava-me e ajoelhava seguindo o povo .

Uma imagem alvíssima de Nossa Senhora

Também não podia ver a imagem do Sagrado Coração de Jesus. A única imagem que eu via era a de Nossa Senhora, de mármore alvíssimo, branquíssimo. Maria Santíssima tinha o Menino Jesus num braço e no outro um cetro para indicar que Ela era Rainha porque Mãe do Homem-Deus. Nossa Senhora, portanto, mandava no mundo inteiro e tudo quanto Ela quisesse Deus faria; Ela participava de algum modo da onipotência d’Ele. O Criador A ama como a Mãe d’Ele. Podia imaginar como Deus A amava, imaginando quanto eu queria a minha mãe.

Pensei: “Se eu que sou finito e um trapo amo minha mãe tanto, tanto, tanto, imagine como Deus, que é infinito, amará a Mãe d’Ele.” Mas conjeturem também como é Nossa Senhora para que Deus A tenha escolhido por Mãe, resolvido encarnar-Se n’Ela, passado um estado de gestação em seu claustro bendito e depois, através d’Ela, ter nascido para salvar o mundo, é uma coisa extraordinária. “Ela deve ser formidável!”

Por um jogo natural de ideias veio-me à mente que se eu, um falsário, me dirigisse ao Sagrado Coração de Jesus não seria atendido, mas que se pedisse por meio d’Ela seria acolhido. Porque assim como eu fazia tudo quanto mamãe queria, também Ele faria tudo quanto a Mãe d’Ele desejava.

Ora, a Mãe de Deus teria – como eu já disse – a influência junto a Ele parecida com a que mamãe tinha sobre mim e, portanto, o que Ela pedisse Deus faria. Mas como era Mãe, Ela queria bem não como um pai quer um filho, mas à maneira que uma mãe quer um filho. Papai me queria bem de um certo modo, mas outra era a maneira de mamãe me querer bem. Deus era Pai, infinito, perfeito, mas Ela tinha mais pena de mim, mais misericórdia, era mais acessível.

Enquanto eu estava pensando assim e olhando para a imagem de Nossa Senhora, não se deu milagre nenhum, mas, sem que houvesse no rosto de mármore da imagem o menor movimento, alguma coisa se passou pelo que eu tinha impressão de que Ela me olhava cheia de bondade e com muita pena de mim.

Por um certo sorriso que os lábios d’Ela não definiram – os lábios não se moveram, a imagem é de pedra, não pode mover-se –, eu tinha a impressão de que Ela sorria. E sorria como quem me conhece: “É o Plinio, filho de Dona Lucilia e de Dr. João Paulo”, e Ela olhava para mim com uma misericórdia e uma bondade especiais.

Plinio: um menino de correção excepcional nas aulas

O fato produziu na minha alma uma verdadeira reviravolta. Compreendi, então, quem era Nossa Senhora e o papel d’Ela para com cada um de nós quando andamos mal, não só quando procedemos bem. Quando andamos bem, Ela é uma Mãe indizivelmente boa para com o filho bom. É uma efusão mútua de afetos e carinhos, enormemente maior quando desce d’Ela até nós do que quando sobe de nós até Ela. Mas em certo momento os dois afetos se encontram e é como se fosse um arco voltaico, um arco-íris, a caminho do Céu.

Então, sem ouvir nenhuma voz – como eu disse, não houve milagre nenhum –, alguma coisa me disse no interior da minha alma o seguinte: “Confie, Nossa Senhora rezará por você, tudo isso se resolverá e mamãe ficará bem com você de novo. Esse negócio vai passar porque Maria Santíssima pediu”.

Voltei para casa e encontrei Dona Lucilia tal e qual. E não podia deixar de ser, porque ela só ia tomar conhecimento da solução do caso do boletim no dia seguinte. Para mim o que contava era ela. Se Dona Lucilia estava contente comigo, o mundo estava contente; se ela não estava, o resto não valia nada.

Na segunda-feira, meu pai, que tinha ido ao Colégio São Luís, a horas tantas entrou em casa com uma cara calma, segura, tranquila. Olhei para ele – que nem percebeu que eu ali me encontrava – e percebi que estava preocupado com o chaveiro o qual não funcionava bem. Cogitei: “Se ele está pensando no chaveiro é porque não está preocupado comigo; tudo correu bem”.

Meu pai era de Pernambuco e os pernambucanos antigos tinham o hábito de chamar as esposas de senhora. Ele aproximou-se de Dona Lucilia e disse:

— Senhora, aqui está o boletim de vosso filho.

Mamãe o pegou logo e perguntou:

— O que houve?

Ele respondeu:

— O Padre Reitor, diretor do colégio com quem eu conversei, deu muita risada quando viu a borradela que o Plinio fez no boletim. Depois me disse que deveria ter havido um engano de cópia, porque o Plinio era em geral de uma boa educação e de uma correção excepcional nas aulas. Acontece que sempre é possível um menino fazer alguma coisa errada. E afirmou: “Se o padre deu essa nota, vou falar com ele para saber qual o motivo”.

Depois de algum tempo, o reitor voltou com o boletim na mão, no qual ele escrevera uma nota dizendo ter havido um engano da secretaria que copiou errado, que a nota que o padre dera ao comportamento de Plinio era dez.

Estava tudo resolvido e o céu azul…

Prestando atenção nas palavras da “Salve Rainha”

Enquanto eu estava na igreja, no domingo, orando a Nossa Senhora, não sabendo o que dizer para Ela, rezei uma Salve Rainha. Foi a primeira vez que prestei uma atenção séria nessa oração. O texto me pareceu lindíssimo – é mesmo uma verdadeira obra-prima – e convinha para minha situação. Aquelas palavras podiam-se adequar a um menino mal comportado e ameaçado de ir para uma espécie de penitenciária, como eu imaginava. Na aflição que eu estava elas convinham perfeitamente.

“Salve” em latim é uma saudação, como quem diz “bom-dia” ou “eu te saúdo”. Mas eu não sabia isso, pensei que “salve” queria dizer “salvai-me”. Dizendo “Salve Rainha” eu entendia: “Rainha, salvai-me desse apuro.”

Então eu pedia com um desejo enorme de ser atendido: “Mãe de misericórdia”. Eu pensava: “Está vendo? Mamãe é tão boa, eu a quero tão bem, mas Nossa Senhora é muito melhor do que ela.”

Isso é pura verdade. Nossa Senhora é melhor a perder de vista do que o mais santo dos homens e o primeiro dos Anjos. Nosso Senhor não fez criatura que fosse igual a Ela. Maria Santíssima é um escalão intermediário entre Deus e a Criação inteira. Há os homens, os Anjos, depois Nossa Senhora num ponto supremo e mais elevado que tudo, e infinitamente acima está Deus. Quer dizer, o que é Nossa Senhora nós nem temos uma ideia.

Ora, essa noção de que Ela era uma pessoa excelsa eu tinha, mas não de sua bondade e misericórdia.

Tudo isso fazia-me ter a ideia: “Vê como a Igreja trata a Virgem Santíssima. Diz que Ela é nossa vida, doçura e esperança. Que beleza! Então Nossa Senhora é nossa vida, essa criatura tão única que ninguém tem comparação com Ela. Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Esposa do Divino Espírito Santo, Filha do Padre Eterno, Ela é Mãe de Misericórdia. Mãe já indica a ideia de misericórdia. Mãe de misericórdia é uma mãe toda feita de misericórdia”.

Eu pensava: “De algum modo pode dizer-se isso de mamãe, mas quão menor é ela do que Nossa Senhora. Quão maior é Ela, mais perfeita, mais incomparável; ninguém é igual a Maria Santíssima. E como Ela tem pena de mim e sorri para mim. Ah, já sei! Com quem eu vou me arranjar na vida é Ela.”

E realmente em casa as coisas todas se consertaram. Depois, ao longo dos anos, eu às vezes brincava com Dona Lucilia sobre o Colégio do Caraça e o filho “falsário” dela. Ela sorria porque eu brincava com muito carinho, muito respeito com ela, e o fato se perdeu nos tempos. Mas uma coisa ficou: a devoção a Nossa Senhora.

Aplausos entusiásticos do público católico

Tudo isso se passou antes do período em que, ainda na minha infância, senti a Revolução em pé contra mim como um leão – ou, pior, como uma hiena – e compreendi que a salvação de minha alma e o futuro de todo o mundo estavam arriscados se essa hiena não fosse derrubada; resolvi então combatê-la. Custasse o que custasse, com a proteção de Nossa Senhora, eu haveria de lutar contra ela e a Santíssima Virgem me daria a vitória.

Minha vida foi transcorrendo, tive com a Revolução esse começo de luta no Colégio São Luís. Fiquei moço, a partir do Congresso da Mocidade Católica, em 1928, ingressei na Congregação Mariana de Santa Cecília. Mais tarde veio a fundação da Liga Eleitoral Católica e minha eleição como o deputado mais moço e mais votado do Brasil.

Precisamente quando eu estava nesse píncaro, exercendo uma liderança enorme sobre todo o movimento católico do País, as coisas chegaram a um tal ponto que, sendo ainda muito moço e convidado continuamente para fazer conferências, discursos por todos os recantos do Brasil, o público católico tomou um tal entusiasmo e uma tal preferência por mim, que fazia coisas que me deixavam pasmo.

Por exemplo, eu não era muito pontual e às vezes chegava atrasado até para a conferência que devia fazer. Mas o público era benévolo, e não só perdoava o meu atraso, mas até me recebia com manifestações de agrado e entusiasmo muito grandes. Quando eu entrava, às vezes vinha correndo do automóvel para o palco para compensar meu atraso. Pouco antes de chegar ao palco parava de correr e andava com passo normal. Quando eu entrava, o auditório inteiro se levantava para bater palmas.

Discurso em homenagem a São José de Anchieta

Entretanto, comecei a notar uma coisa que me encheu de pasmo. No próprio meio católico começaram a aparecer maledicências a meu respeito, como, por exemplo, que eu estava fazendo um número insuficiente de discursos na Constituinte, quando deveria falar mais; que eu tratava os deputados anticatólicos com uma dureza que chegava aos limites da brutalidade, e outras coisas assim.

Ora, o Cardeal Leme, Arcebispo do Rio de Janeiro, mandou um recado aos deputados católicos dizendo esperar que não fizéssemos discursos, de maneira a não comprometer a combinação feita por ele com todos os deputados da Constituinte, para aprovar tudo quanto a Igreja queria. Segundo ele, já estava todo o jogo pronto e não havia dúvida a esse respeito. Por causa disso ficássemos quietos.

Assim, eu não podia fazer outra coisa senão ficar quieto. Se fosse falar, cometeria uma irreverência contra a Igreja que mandava isso. Então, só discursava quando surgia uma ocasião boa na qual eu podia justificar ser indispensável falar.

Houve, por exemplo, um centenário de Anchieta e eu aleguei ser preciso um deputado católico falar, porque Anchieta era uma grande personalidade do mundo católico, e que eu, deputado por São Paulo, ex-aluno dos Jesuítas – Anchieta era jesuíta –, tinha o direito de falar. Dom Leme concordou e fiz um discurso.

Com voz tonitruante, redarguiu um deputado comunista

Em outra ocasião, estava falando na tribuna um deputado comunista chamado Zoroastro de Gouveia. Em certo momento ele deu a entender mais ou menos esta ideia: o católico não podia ser um bom patriota porque dependia do papa, o qual para os católicos é uma potência estrangeira e, portanto, todo o católico estava disposto a trair o Brasil em favor da Igreja.

Eu me levantei e, da primeira fileira que ficava a dois passos da tribuna, falei com uma voz verdadeiramente tonitruante:

— Senhor deputado, venho lavrar o meu protesto mais categórico e indignado contra o insulto infame que Vossa Excelência acaba de atirar em rosto dos católicos…

E tonitruei contra ele. A Câmara estava acabando o trabalho do dia, os deputados cochilavam e alguns cochichavam. Quando saiu aquele barulho todos se levantaram:

— O que é isso aí?

O Zoroastro de Gouveia ficou pasmo com aquilo tudo, sem saber como responder. Então me disse alguma coisa qualquer, eu mais uma vez protestei e ele saiu da tribuna.

Esse episódio deixou tal lembrança em quem o presenciou que, uns trinta anos depois, precisei ir à Câmara dos Deputados, em Brasília, para levar um protesto de proprietários rurais contra a Reforma Agrária que já naquele tempo se queria fazer. Ali indicaram que entregássemos o protesto ao secretário da Câmara para ele encaminhá-lo ao Governo.

Chegando lá, cumprimentamo-nos e entregamos-lhe aquele protesto. Ele começou a tomar notas, trabalhos de burocrata, e em certo momento fitou-me. Pensei: “Já estou vendo o que está na cabeça desse homem…” Ele parou o serviço e me perguntou:

— Diga-me uma coisa, o senhor já foi deputado?

— Já.

— Não foi o senhor que passou aquela descompostura no deputado Zoroastro de Gouveia?

Trinta anos depois o homem ainda estava lembrado da descompostura! Mas, apesar disso, a difamação circulava.

Uma freira procurou denegri-lo

Eu notava também – e isso me impressionava mais – que, da parte dos católicos e de alguns daqueles a quem tinha em conta de bons católicos, vinha uma indizível série de pequenas indiretas contra mim, na minha presença, que indicavam haver uma conspirata qualquer para me afastar, pôr-me de lado, e eu não sabia a razão.

Uma coisa característica foi isto: durante esse tempo, criou-se em São Paulo a Universidade Católica e fui nomeado professor de História da Civilização de duas faculdades dessa universidade. Certo dia, eu estava lecionando e uma freira veio me pedir licença, dizendo que estava ali presente uma compatriota dela, belga, a qual tinha ouvido falar muito das minhas aulas e queria assistir a uma delas.

Eu disse:

— Pois não, à vontade. Arranjem uma cadeira mais confortável para a freira poder assistir à aula, e eu tenho todo o gosto de lecionar diante dela.

Quando terminou a aula, pensei que ela estaria de pé na porta para me cumprimentar, porque seria o normal, uma vez que eu lhe dera licença de assistir à minha aula. Mas ela tinha sumido.

Algum tempo depois, encontrei a freira que fizera o pedido e perguntei:

— O que aquela freira belga achou da minha aula?

— Ah, ela fez um comentário muito elogioso.

Pareceu-me esquisito que ela não fizesse o comentário elogioso para mim, mas fosse fazê-lo para a outra. Pensei: “Aqui tem ronha…”

— Ah, sim, está bem. E o que ela comentou? – perguntei.

— Ela disse que o senhor é um professor tão claro que, segundo o parecer dela, está mal empregado numa universidade, e seria muito melhor que o senhor fosse utilizado numa escola para débeis mentais porque, sendo claro como o senhor é, até esses conseguiriam entendê-lo.

Ou seja, o senhor ficaria melhor empregado lecionando para uma escola de bobos. Ora, isso não é elogio, mas sim denegrir um professor, e de um modo muito esquisito, porque não é degradar por um defeito, mas por uma qualidade. Quer dizer, a qualidade é tão grande que até merece ser degradado.

Discussões vivíssimas com católicos de ideias revolucionárias

Comecei a notar também que, fazendo parte do Movimento Católico, começava a se formar uma ala de gente que professava uma doutrina inteiramente diferente da Doutrina tradicional da Igreja.

Essas pessoas achavam, por exemplo, que até então a Igreja tinha feito muito mal em proibir danças e a ida a lugares suspeitos, porque isso fazia com que os bons, separando-se dos maus, nunca tivessem oportunidade de convertê-los. Então o mundo ficava rachado em dois: os bons e os maus. O que os bons deviam fazer era misturar-se completamente com os maus e ir até aos lugares de perdição, porque ali, se tivessem comungado de manhã, eles levariam “o Cristo” – não diziam “Nosso Senhor Jesus Cristo”. “O Cristo” presente neles haveria de converter essas pessoas.

De maneira que, segundo essa concepção, tudo deveria mudar. Os católicos precisavam se modernizar, tornar-se gente muito capaz de coisas engraçadas, pilhérias, etc. As moças deveriam fazer concessões em matéria de trajes, ler revistas inteiramente mundanas.

Integrantes dessa corrente fizeram reuniões comigo e tivemos algumas discussões vivíssimas a esse respeito. Notei que a corrente estava imbuída de ideias da Revolução Francesa.

Certa noite, eu estava na sede do “Legionário”, semanário católico do qual era o diretor. O andar térreo do prédio era todo ocupado pelas dependências do jornal. No piso superior, havia um salão grande que tomava o andar inteiro e servia de sala de conferências ou de teatro. Eu estava embaixo, trabalhando com outros nos preparativos do próximo número do “Legionário”, e notei que essa ala nova estava fazendo uma festa no salão de cima. De onde me encontrava podia ouvir as músicas que cantavam e alguma coisa dos discursos que faziam. Era tudo ao revés do que somos e defendemos.

Houve um menino que, numa hora muito difícil, clamou a Nossa Senhora

Em certo momento, um deles desceu e me disse o seguinte:

— Plinio, eu vim falar com você uma coisa muito séria.

Pensei: “Como pode ser séria, se você não é sério?”

— Mas o que é? – perguntei.

— Você note a diferença entre os dois andares. Você aqui embaixo e os seus jovens do “Legionário” representam a Igreja antiga, séria, que reza, trabalha, luta contra o adversário. Nós, em cima, representamos a Igreja nova, que ri, dança, se diverte, vai para a praia, para a piscina, vai por toda parte levando “o Cristo”. Mas uma coisa eu queria avisar a você: está feita uma combinação de mudar completamente a Igreja, de fazer com que a Igreja antiga cesse de existir, e dentro da casca dessa Igreja antiga apareça uma Igreja nova que somos nós. Agora, qual é o seu futuro? Se você aderir à Igreja nova, temos muita força política e não há cargo político a que não elevemos você. Mas se você continuar nessa situação em que está, aos poucos a Igreja vai passando completamente para o outro lado, você vai ficar só e completamente esmagado, o seu futuro acabou. Você vai acabar por ser um desconhecido.

Olhei para ele, e disse:

— Fulano – não quero revelar o nome dele –, eu prefiro tudo a vender-me. E você saiba que ainda que eu deva ser o último dos homens, serei o último dos soldados da Igreja tradicional, mas ela nunca morrerá. Afirmar que serei o último dos soldados é um modo de dizer, porque depois de mim virão outros que pensarão como eu, mas a Igreja não morre.

— Bem, você foi avisado. Depois não se queixe…

— Eu só me queixaria se soubesse que Deus vai me abandonar na luta. Mas isso nunca acontecerá, porque tenho confiança n’Ele e em Nossa Senhora. Poderá suceder que eu seja derrotado; porém outros virão e vencerão, mas não abandono a minha posição.

Nunca mais nos falamos. Realmente, ele foi alçado aos mais altos graus. Eu, a esses graus não subi. Eu sou Plinio Corrêa de Oliveira.

Os anos escoaram e até aqui chegamos. Durante esse período, houve perseguições de todo tamanho contra minha Obra, estrondos publicitários aos quais temos respondido na ponta da lança continuamente. O fato concreto é que nunca ninguém conseguiu vencer-nos, crescemos cada vez mais e jamais perdemos a confiança. Isso porque houve um menino que, numa hora muito dura de sua existência, recebeu uma graça e clamou a Nossa Senhora, dizendo: “Salve, Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve!”

Rezando o Rosário e comungando todos os dias, confiando na Santíssima Virgem como Mãe e Rainha de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, Medianeira universal de todas as graças junto a seu Divino Filho, Nosso Senhor Jesus Cristo, nós temos resistido e resistiremos; e com a ajuda d’Ela levaremos a luta até à vitória!             v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/2/1995)
Revista Dr Plinio 266 (Maio de 2020)

 

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