Inscrita na História

Costuma-se exaltar o esplendor dos ocasos. E com razão. Quem só conhecesse o meio‑dia não poderia se gabar de conhecer bem o sol, pois este possui belezas de crepúsculo como as possui de aurora, e é o conjunto desses encantos que compõe a beleza global do nosso astro soberano.

Isso que se aplica ao sol, pode-se dizer também dos povos e das nações. Passam eles por períodos que parecem de decadência e não o são: as coisas param, mas vão se revestindo da prestigiosa pátina do tempo, situam-se meio fora do movimento terreno e meio se confundem com a eternidade.

Esse pensamento me veio especialmente ao espírito quando me caíram sob os olhos algumas fotografias de Veneza. Por exemplo, a Catedral de São Marcos, que, a meu ver, é o ponto auge e central da cidade. Mais do que isso Veneza não realizará.

Entretanto, imaginemos a Rainha do Adriático parada na História como ela foi no seu apogeu, antes de ser invadida pelas ondas de turismo inimagináveis que, de um jeito ou de outro, modificaram o seu ritmo de vida.

Imaginemo-la, pois, no seu quotidiano normal, comum e tranqüilo, com aquelas seculares famílias nobres habitando seus palácios, o povinho esparso aqui e ali, as gôndolas deslizando através dos canais. Seis horas da tarde, o campanário de São Marcos toca o Ângelus, as pessoas se persignam, rezam as ave-marias. Uma hora depois, novo toque de sino, a noite já se abraça ao dia, o canal imerge pouco e pouco na neblina, o Palácio dos Doges parece dormir. No interior da igreja acende-se uma vela, outra, depois outra. Em certo momento, todos os sinos e carrilhões repicam festivos: é mês de Maria e haverá uma festa daquele povinho em louvor de Nossa Senhora.

Os fiéis começam a chegar, vêem-se senhoras idosas com suas cabeças cobertas por véus de renda, personagens influentes acompanhados de seu séquito, matronas em liteiras, e todos, calmamente, vão ocupando o recinto sagrado. Mais alguns instantes, e um coro — que já tem 300 anos de existência — entoa com suas vozes quintessenciadas os mais belos hinos em honra da Mãe de Deus.

Mas, ao cabo de algumas horas a cerimônia termina, as luzes se apagam, a praça se cobre de penumbra e cada um se dirige para a respectiva casa.

Como não perceber nisso a pátina do tempo que acrescenta outros aspectos aos esplendores de Veneza e confere a esta uma espécie de nota de eternidade que seria um erro confundir com decadência?

Pelo contrário, é a inscrição de Veneza na História, a saída dela de dentro dos acontecimentos humanos para se tornar um elemento de admiração dos povos, sempre bela e fixada na glória.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 17/2/1989)

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