Admiração: doutrina e exemplos

Em Dr. Plinio a admiração surgia da conjugação dos princípios com os símbolos que os representavam. Este fenômeno atingia seu auge na consideração das coisas sagradas e da Pessoa de Nosso Senhor Jesus Cristo.

 

Todos nos lembramos dos cursos de Catecismo que fizemos, os quais eram inteiramente padronizados. Se compararmos os manuais de Catecismo de diversas épocas, veremos haver entre eles apenas mudança de ortografia, o que, aliás, tem seu lado muito louvável: “És cristão? Sim, sou cristão pela graça de Deus. Ser cristão é ser batizado, crer e professar a Doutrina de Nosso Senhor Jesus Cristo, etc.” É um escachoar de esplendores, mas apresentado sob a forma da estrita doutrina.

Parabolização

Aquilo causa admiração? Causa, e todos nós tivemos fugazes movimentos de admiração ao longo do curso de Catecismo, e depois, no decurso da vida, com aquilo que aprendemos na catequese. Quer dizer, de vez em quando, um ou outro aspecto vem à memória, achamos bonito, e aquilo fica depositado no espírito. Essa é uma admiração de caráter meramente doutrinário diante da qual o homem comum não se sustenta por muito tempo.

Minha posição admirativa perante esses princípios teve mais longevidade porque Nossa Senhora me deu, de um lado, certa profundidade de espírito e, de outro lado — coisa muito importante que, a meu ver, convém frisar —, uma facilidade de compreender estados de alma de pessoas que conheci, ou sobre as quais li ou ouvi falar, como também interiores de casas, aspectos de fachadas, paisagens, plantas, animais e uma série de coisas relacionadas com isso, o que me permitia fazer uma fabulação, isto é, transformação do princípio na fábula. Mas seria muito mais correto dizer “parabolização” daquilo que foi visto no Catecismo; é a aplicação dos princípios.

Princípios assimilados através de objetos

Dou um exemplo característico: enquanto, em toda a minha vida, tive desinteresse por calicezinhos de licor, pequenos, bonitinhos, mas que não me dizem nada, os cálices grandes, de um tipo que se deixou de usar já no século XIX, sempre me interessaram muito. Primeiro de tudo, os cálices usados na Missa sempre me falaram enormemente.

De outro lado, certas taças mais antigas que tinham a forma de cálice. Por exemplo, na Idade Média, cálices pesados, com cabos cheios de pedras preciosas, nos quais se punha um vinho generoso e abundante, e que eu, amigo do vermelho, gosto de imaginar o “Bourgogne”. Beber aquilo me parece que é nobre, dá alento ao homem, circulação à vida, a natureza se torna mais robusta. Sobretudo se o cálice é um pouco rústico, de um cristal grosso, quase uma rocha dentro da qual se cavou um cálice para ser usado por algum par de Carlos Magno… Parece-me muito convidativo.

Isso me fala muito da mentalidade humana enquanto realizando a síntese do pensamento. A forma do cálice me sugere um pensamento cuja conclusão e síntese estão no ponto onde o cálice encosta na haste.

No cálice da Missa está presente o holocausto por várias razões considerado, que se fecha efetivamente no propósito e na consumação do martírio. Levantar um cálice de ouro é de “toute beauté”!(1) A elevação do cálice sempre produz em mim muito efeito, porque a Fé me ensina que ali estão o Corpo e o Sangue de Nosso Senhor Jesus Cristo, e também porque, para mim, o holocausto feito na Missa se simboliza muito no cálice.

Então, vemos a verdade de Fé muito relacionada com um objeto a serviço desta verdade. Assim, há uma facilidade muito grande de guardar o princípio, por causa exatamente de um objeto que fixa a parábola ao princípio, dando a este uma espécie de vida que, para o meu modo de ser — para um indivíduo mais intelectual talvez não seja assim —, é absolutamente indispensável.

Lamparina do Santíssimo Sacramento, mármores e incenso

Um objeto que tem algo a ver com o cálice e produz em meu espírito um efeito análogo é a lamparina. Lamparinas bonitas, bem arranjadas, havia muitas antigamente. As lamparinas nem sempre têm um valor extraordinário, mas possuem um elevado aspecto simbólico.

Eu tenho, graças a Nossa Senhora, uma facilidade por onde, numa vigília noturna, por exemplo, diante do Santíssimo Sacramento, olhando para a lamparina, as considerações doutrinárias que faço pousam sobre a lamparina, tomando-a como símbolo, conferindo uma proporção humana àquelas considerações teóricas.

Para meu uso pessoal, isso significa muito e dá, então, aos princípios do Catecismo um complemento que me facilita admirar.

Mármores muito bonitos empregados em igrejas me dizem muito também. Havia igrejinhas paroquiais na São Paulinho, que eu conheci no meu tempo de menino, e diante das quais me extasiei a justo título. A Igreja de Santa Cecília, por exemplo, é igrejinha paroquial. Mas tem uma capela do Santíssimo Sacramento com mármores de Carrara, representando desenhos geométricos.

Fiquei encantando com aquilo. E aqueles princípios geométricos se assimilaram em meu espírito a uma lógica, a um vigor, a uma coerência, que a força conferida pelo Santíssimo, pela Comunhão, dá à alma e exige dela.

E, assim, mil outras coisas!

Por exemplo, o incenso é uma coisa fenomenal! Simboliza a alma humana que se eleva na oração, mas a alma sacrificada, dolorida, que está queimando, e faz subir a Deus uma oração de agradável odor. Mas também a homenagem respeitosa, nobre, aristocrática, que sobe até o trono de Deus.

E, depois que o incenso se espalha bem na igreja e dá a impressão de que as nuvens vieram povoá-la, tornando-a meio conatural com o céu. Assim, há uma porção de coisas que a mim falam muito agudamente e que, em toda a minha vida, relacionei com os princípios, facilitando a admiração por eles.

Admiração: conjugação elevada de diversos princípios

Em nós a admiração não é uma operação de Anjos, mas de homens, em que os princípios precisam estar associados, conjugados, relacionados com símbolos, e daí subir — por assim dizer, explodir — à admiração.

Isso eu fazia com uma multidão de coisas da vida. Por exemplo, certa ocasião meus olhos caíram num quadrinho colocado na parede de uma sala, o qual representava uma caravela saindo da laguna de Veneza e demandando o mar. Não pretendo nem um pouco dizer que se tratava de um grande quadro, uma maravilha, mas era um bom quadro. A água era apresentada num colorido muito matinal, uma espécie de azul ligeiramente esverdeado, que parecia quase uma pedra preciosa.

Por detrás, em contraste com a serenidade matinal do mar, uma acumulação de nuvens ainda luminosas, mas que para mim falavam de um porvir borrascoso para a nau. O navio parecia sair da laguna com a tripulação inconsciente dessas nuvens e toda enlevada com a água. As velas enfunadas pareciam exprimir o desígnio humano de navegar, enfunado pela esperança da navegação bem sucedida e pela alegria da viagem, da mudança, do lucro e do risco.

Daí uma facilidade muito grande de admirar aquilo. Não estou analisando o quadro enquanto quadro, mas a paisagem. Teria mais valor ainda se eu a visse, não numa tela, mas na realidade.  O valor da cena representaria mil aspectos nobres da alma humana, que eu passo a definir.

Primeiro, uma mobilidade leve e decidida rumo ao desconhecido, que é o passo da coragem, do destemor. Depois, uma espécie de altura; o mastro central parecia desafiar o mar, com uma atitude ligeiramente de senhorio em relação ao mar, como quem diz: “Eu te vejo de cima, e tu não me engolirás!”

Mas, de outro lado, as saudades pesam em algo. O barco não dava a impressão de estar saindo muito depressa. Ele parecia dizer um discreto adeus à terra. E, por fim, a borrasca atrás parecia afirmar que os navegantes estavam com a alma decidida ao risco. A cena lembrava estados de alma muito bonitos.

Ou seja, por detrás disso estavam princípios que se tornam mais fáceis de serem amados quando se fazem essas correlações.

Daí nasce a admiração. Porque assim é fácil admirar. Imaginemos que colocassem em nossas mãos um tratadinho intitulado: “Das virtudes do navegante”. Pode ser muito verdadeiro, apreciável. Eu gostaria enormemente de ter esse tratadinho para ordenar, dar o sentido profundo das impressões que aquilo me causou. Mas no “éclat”(2) da admiração, a impressão tem seu papel.

Grandeza enquanto atraindo, protegendo, perdoando

Gosto muito da imagem do Coração de Jesus que se encontra na sala de visitas de meu apartamento, venero-a muito. Mas ela é muito menos expressiva, como imagem, do que o quadro acima descrito.

Diferente é a impressão que me causa, não a imagem, mas o próprio Coração de Jesus. É, em seu aspecto afável e doce, a própria perfeição, de uma superioridade infinita em relação a qualquer pessoa que se achegue a Ele. Mas de uma dessas superioridades que nem sei como qualificar; é total! Os homens só não se surpreendem com o Sagrado Coração de Jesus porque são de pedra mais dura do que o alabastro com o qual foi feita aquela imagem.

É a grandeza enquanto atraindo, protegendo, perdoando, e não enquanto pondo o indivíduo no lugar e dando uma lição de hierarquia. Entretanto, a lição de hierarquia está ali presente. Quer dizer, é impossível olhar para Nosso Senhor sem cair de joelhos. Em qualquer leitura do Evangelho, queiramos ou não, fazemos uma imagem mental de Nosso Senhor. E esta imagem mental sempre leva a pessoa a se ajoelhar. E com o Coração à mostra, ainda muito mais.

Nosso Senhor dormindo no barco

Consideremos as várias cenas do Evangelho, que estão na linha do Sagrado Coração de Jesus. Nosso Senhor dormindo no barco, durante a tempestade, por exemplo.

É a coisa mais comum que pode haver. Um marzinho, um barquinho ordinário e um homem com uma túnica pobre — mas, segundo uma bela tradição, esta túnica era inconsútil e crescia com Ele! —, deitado e dormindo. E o sono de Jesus, que harmonia! Que doçura, que perfeição! Quanta reflexão dentro deste sono! Que elevação a deste repouso! O mérito santíssimo daquele cansaço que assim se desprendia d’Ele e subia como holocausto até o Céu.

O contágio do repouso, da paz d’Ele, para quem O olhasse. Nunca seria possível aproximar-se d’Ele e vê-Lo dormindo, sem imediatamente se ajoelhar. No que diz respeito a mim, uma vontade enorme de tocar n’Ele, e uma falta de coragem! Como é possível tocar n’Ele? Nem em suas vestes, em que tocou aquela mulher, eu ousaria tocar. O lugar onde se soube que Ele pousou os pés, se não deixou marca, ali eu ousaria oscular; se deixou, não ousaria. Porque é Deus!

Podemos imaginar como os cabelos d’Ele, durante o sono, se dispunham em torno dos ombros… Não ornamentalmente, mas com certa naturalidade. Porém, que efeitos produziam! Sua respiração perfeitíssima, enquanto dormia, exalando amor àquele que de olhos fechados Ele via! O que se passava durante o sono d’Ele, o que significa seu sono? Incontestavelmente dormia. Mas, não é como o nosso sono… Não será que Ele rezava enquanto dormia, dirigindo-Se ao Padre Eterno? A natureza divina d’Ele certamente falava. E o que falava?

Será que não teria conhecimento de que nos encontrávamos ali perto? E não estava nos comunicando graças durante este tempo, enquanto dormia?

E nosso furor se alguém viesse dizer que, do lado de lá do lago, há gente que trama a morte d’Ele. “Acontecerá qualquer coisa, menos que toquem n’Ele. Bandidos!” Creio que a única coisa que poderia distrair um homem do fato de Ele estar lá seria a ideia de que os assassinos estivessem ali perto. Mas, ainda nisso, entrava uma admiração sem limite. Como é maravilhoso admirar! Aí sim, sentir-se pequeno, que coisa maravilhosa!

Nisso entraria toda uma teoria da admiração!

Porém, isto tem uma recíproca: a pessoa não ser capaz de ver uma coisa sem reportar até os princípios. E, portanto, certas admirações que eu tive, deixando-me “écrier”(3) de encantamento.

As correlações ajudam a alimentar a admiração…

A grande casa de modas em São Paulo era “La Saison de l’Année”, que fazia vestidos para senhoras de acordo com a estação do ano. A casa não era francesa, devia ser de uma Da. Francisquinha, que parecia entender do “métier”; sabia, sobretudo, ganhar dinheiro, fazia muita fortuna. E sabia muito bem agradar senhoras ricas. Ela era “francesosa”.

Mas, então, chegavam lá na Francisquinha, com um pimpolho chamado Plinio, conduzido pela mão e desolado de ter que entrar na casa de modas. Sentia uma caceteação sem nome, tanto mais que a cliente e a Da. Francisquinha esqueciam absolutamente que o pimpolho existia. E embarcavam nas suas elaborações infindas. Porque a Da. Francisquinha devia fazer a crítica, mas quão amável e respeitosa para não perder a freguesa.

E surgiam novas sugestões. Então, as vendedoras traziam pilhas de revistas que colocavam sobre a mesa, e debatiam. De maneira que uma sessão com a Da. Francisquinha, o mínimo que levava era meia hora. Mas para um menino, ficar meia hora sem ar… Devemos imaginar tudo isso na São Paulinho pequena, muito rica — sempre foi rica — e totalmente europeizada.

Havia uma casa de flores chamada, se não me engano, “La Rose de France”. Vemos em tudo a influência francesa, a qual eu hauri de todos os jeitos, a plenos pulmões e de todos os modos. Como nas outras casas de flores, havia uma vitrine. De repente, “La Rose de France” resolveu pôr um sistema de umectar continuamente a vitrine, de maneira a conservar melhor as flores. E, ao longo de toda a vitrine, pequenos arcos de água caíam formando filas. Tornava-se uma espécie de cortina de água transparente, constituindo como que um babadozinho, mas que era uma coisa linda!

Lembro-me de que, indo ao colégio de bonde, passei em frente dessa casa de flores e, de repente, notei aquela modificação na vitrine e pensei: “Ah, que maravilha! Se pudesse, eu descia para ir olhar lá em frente. Não posso descer. Mas que coisa estupenda!”

Encantei-me, ­admirei enormemente porque há uma porção de estados de espíritos no homem que cortinas desse gênero me sugerem, e que a água disposta assim sugere ainda mais. Donde uma admiração, porque tem uma relação com a alma humana, com situações históricas que foram assim, etc.

Esse relacionamento fácil ajuda enormemente a admiração.  E eu me pergunto se nós todos não poderíamos adquirir isso, se quiséssemos.

…e esta, por sua vez, torna-se uma evidente defesa da pureza

A expressão “Santa Igreja” diz que a Igreja é santa. Intelectivamente se compreende o que é a santidade, mas há uma beleza na expressão “Santa Igreja”, que faz reluzir esta verdade. A Santa Igreja é uma coisa celeste, divina! A Santa Igreja Católica Apostólica Romana… A própria cadência dos adjetivos é de uma beleza extraordinária!

Um simples tratado de Teologia, para quem é insensível a isto que nós estamos dizendo, deixa a alma com todos os elementos para a admiração? Eu não creio. Estou longe de menosprezar o tratado de Teologia. Eu penso que ele, como contém a verdade expressa, é muito mais importante do que isso. Mas não quero dizer que a alma humana deve estar dissociada disso.

Inclusive o vocabulário humano é criado para exprimir essas coisas. Não é criado só para isto, mas também para isto, numa função que a meu ver é altamente conveniente ou necessária.

São Paulo afirma que os romanos, por não terem o desejo de amar essas coisas, caíram na imoralidade. A meu ver, isto que estou explanando é uma defesa da pureza; é até uma evidente defesa da pureza.

Entretanto, no espírito dos homens contemporâneos, a Revolução pôs a ideia de que se devem estancar os surtos de alma que vão nesse sentido, porque formam um homem fantasioso, inútil e desviado nas suas elucubrações.

Unir-se é ver, admirar e inalar!

Lembro-me bem de como o carinho de mamãe ajudou-me a fazer correlações como essas.

Eu acordava durante a noite com insônias, ia até a cama dela e tinha a inconsciência de me sentar sobre o peito dela, e abrir seus olhos com as mãos. Eu percebia que mamãe estava com muito sono, mas ela abria os olhos, olhava-me com afeto e imediatamente dizia: “Meu filho!” E tirava o seu travesseiro e me punha sentado sobre ele — era uma criança de dois, três anos — e começava a brincar comigo.

Ela tinha me salvado daquele “naufrágio” de estar acordado sozinho num quarto escuro, onde apenas um pouco de luz entrava por uma bandeira de uma porta. Ela me havia salvado do desespero. Mas com que abundância de bondade!

Quando vinha o sono, ela me deitava, brincava ainda um pouquinho comigo, e eu dormia. Naquele tempo eu já pensava: “Querer bem é assim, e com ela eu me arranjo!” Mas não era um pensamento utilitário. O querer bem é assim… Minha ideia era: “Eu preciso querê-la assim, e já estou querendo”.

Ao chegar a velhice dela, eu a ajudei no “naufrágio”. Porque a solidão naquela idade seria um naufrágio, do qual a solidão da criança, no quarto durante a noite, era uma imagem. E creio ter feito com ela o que ela fez comigo.

Vendo-a querer-me bem daquele jeito, eu aprendi com ela, nela, a querê-la bem do mesmo modo. Quando se vê alguma coisa em alguém e ama de maneira a modelar seu espírito de acordo com aquilo, isto é união.

Subindo infinitamente de ponto, quem olhasse Nosso Senhor dormindo na barca, ou era de uma ingratidão soberana, ou sairia de lá com outra alma. Porque unir-se é isso. É ver, admirar e inalar! Receber, acolher e modelar-se. Isto é unir-se!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/10/1984)

 

 

1) Do francês: de toda beleza.

2) Do francês: brilho.

3) Do francês: gritar, proclamar fortemente.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *