Coração pacífico e beligerante de Jesus

O Sagrado Coração de Jesus deve ser considerado não apenas em seu caráter pacífico e amoroso para com os homens, mas também beligerante e cheio de cólera sacrossanta para com os adversários.

A devoção ao Sagrado Coração de Jesus é uma realidade cuja história vem carregada de mistérios, muitos dos quais só o futuro nos explicará.

 

Conceito de Revolução e de Contra-Revolução

 

Na literatura referente ao Sagrado Coração de Jesus encontram-se várias afirmações de personagens santos, os quais transmitiam mensagens cheias de esperança recebidas por vias místicas, no

sentido de essa devoção ser vencedora de um certo problema, de um determinado inimigo que, no fundo, é a Revolução. No entanto, dizem isso de um modo tão global e, ao mesmo tempo, difuso através de tantos temas que eles mesmos não sabiam bem como designar. Falavam em impiedade

contemporânea e outras expressões como esta, mas sem mencionarem explicitamente a Revolução e, por consequência, também a Contra-Revolução.
O mais extraordinário dentro disso é que em Paray-le-Monial1 quando Nosso Senhor Se revelou, embora se perceba bem que Ele tivesse em vista a Revolução, não há uma referência próxima a ela em suas adoráveis palavras.
Entretanto, não há dúvida de que o conceito Revolução e Contra-Revolução, estivesse incluído na temática da devoção ao Sagrado Coração de Jesus, pelo caráter fundamentalmente militante da Igreja Católica e de tudo quanto ela faz para derrubar os seus adversários.
A este respeito, transmito algumas reflexões feitas em horas vagas, na oportunidade de tratar deste assunto.
Se consideramos as obras de escritores católicos do século XIX de cunho mais ou menos contrarrevolucionário, encontraremos a palavra revolução, mas de maneira tão vaga que não se sabe bem se eles distinguem a Revolução universal da Revolução Francesa, a ponto de muitas vezes não se notar bem se estão falando de uma ou de outra, ou mesclando ambas. Isso perturba a intelecção do que eles querem dizer, e creio que na cabeça deles o termo também estivesse confuso. Eles não viam, ou não sabiam dizer; não sei o que acontecia, acaba sendo um mistério.
A meu ver, este mistério se elucidará no decurso da Revolução, e nós devemos tratar disso com toda a reverência, com todo o respeito e afeto com que um assunto dessa natureza deve ser tratado.

Denúncia feita no “Em Defesa da Ação Católica”

Nos textos das revelações, as próprias esperanças na vitória do Sagrado Coração são meio indefinidas, de maneira a não ficar claro se uma convulsão mundial é condição necessária para se chegar a essa vitória, quando virá e que relação tem com a Revolução. São coisas que ficam numa espécie de penumbra mística que devemos saber respeitar.
Mais ainda. As revelações deixam entender que seria lógico imaginar que o Sagrado Coração de Jesus estaria incluído nos símbolos referentes à grande vitória que esmagará os adversários da Santa Igreja e por onde se declarará instaurado o Reino de Maria. Mas quando recorremos, por exemplo, às visões de São João Bosco sobre esse assunto, encontramos aquela imagem da embarcação – simbolizando a nau da Igreja ameaçada de procelas – que, em determinado momento decisivo da batalha, será amarrada a duas colunas as quais estão em pleno mar apoiadas sobre rochas. Em uma destas colunas tem no alto o Santíssimo Sacramento e na outra, Nossa Senhora Auxiliadora. O Sagrado Coração de Jesus não está representado, e, entretanto, julgar-se-ia ser um símbolo que poderia figurar.
Alguém me dirá: “Mas Sagrado Coração de Jesus e Santíssimo Sacramento, afinal de contas, é o mesmo tema.”
São temas distintos versando sobre uma mesma realidade adorável, que é Nosso Senhor Jesus Cristo, Homem-Deus e Redentor; não se pode dizer que é o mesmo tema.
Nesse contexto, há um fato histórico que deve ser levado em consideração. Até o momento presente, pelo menos, nessa luta do Sagrado Coração de Jesus contra a Revolução, torna-se claro que a vitória esperada por Ele não se deu porque apareceu uma força oposta: o progressismo, que varreu da Igreja esta devoção como, de um modo geral, as outras devoções particulares, conforme está denunciado no livro Em Defesa da Ação Católica.
Com efeito, está previsto nesta minha obra que essa força – a qual, mais tarde, receberia o título de progressista – queria suprimir todas as devoções privadas e, portanto, também a do Sagrado Coração de Jesus. Realmente, o grande movimento mundial de devoção a Ele desapareceu ou, ao menos, aquele impulso, aquela chama, passou a ser uma brasa, na melhor das hipóteses.
No que ficam, então, as previsões da vitória dessa devoção, quando estava no programa da Providência fazê-la vencer? Entretanto, Deus que conhece o passado, o presente e o futuro com igual clareza, ao mesmo tempo tinha conhecimento da tristíssima realidade contra a qual nós seríamos pregoeiros.

Facho de luz durante a noite

Em relação a certas devoções, quando introduzidas na Igreja, a economia da Providência é que elas entrem como o facho de luz de um farol durante a noite, mas não encontrem no seu caminho os seus traços coincidindo com algum outro facho de luz. Não podemos imaginar dois faróis colocados em posições simétricas e iluminando um ponto intermediário. Não conheço dois movimentos que tenham surgido em tempos mais ou menos simétricos iluminando a mesma área espiritual da Igreja Católica.

São Pedro Julião Eymard2, por exemplo. Se formos estudar tudo quanto ele diz a respeito do Santíssimo Sacramento, encontramos outro rio assombroso de riqueza, de força, que nos daria vontade de consagrar toda a vida apenas a essa devoção e a esse estudo.
Vão se formando, por assim dizer, áreas de piedade entre os católicos, de maneira que, no total, um católico passeando pela Igreja, como Adão passeava pelo Paraíso, vê maravilhas aqui, lá e acolá, e depois faz uma síntese de todas elas. Essas maravilhas foram postas para ele se embeber delas mais ou menos ao mesmo tempo em que essa síntese seja feita.
O bom católico dos tempos que precederam o movimento progressista facilmente podia ser membro do Apostolado da Oração, portanto devoto do Sagrado Coração de Jesus, congregado mariano, adorador do Santíssimo Sacramento, inscrito para fazer adoração noturna uma, duas ou cinco vezes por mês.
Essas coisas todas, que são fachos que partem de faróis diferentes e transitam através de áreas intermediárias diversas, acabam se fundindo na alma do bom católico comum, do piedoso vigário que as prega, como o fiel depois as toma e forma um conjunto que é a finalidade providencial disso tudo.
Não é preciso muito discernimento para suspeitar que aí esteja o verdadeiro plano da Providência e que nisso se percebe o mistério.

Uma ilha da qual o continente se desgarrou

 

Nossa tarefa nesta matéria é, sobretudo, a de, como católicos praticantes, carregar em nossas almas esse plateau3 das devoções juntas nesta mescla orgânica, vital, um pouco desordenada, mas desordenada apenas na aparência. Como, por exemplo, quando olhamos as estrelas no céu e temos a impressão de uma poeira brilhante jogada desordenadamente no espaço; sabemos que é uma impressão estulta. Assim também termos uma devoção neste gênero pela qual, entretanto, por nossa especial vocação, caminhamos por todas essas maravilhas através de Maria.
Notem bem que eu não estou inventando, mas procurando descrever. Somos uma ilha da qual o continente se desgarrou; ficamos com o que havia de bom no continente, procurando preservar, dar vitalidade a tudo. De maneira que quando chegar o Reino de Maria, por nossa ação natural e espontânea de filhos da Igreja que não disputam terreno uns aos outros, mas que se encontram e se rejubilam, tudo isso volte com essa naturalidade para os seus lugares.

Isto é um bouquet de flores incomparável trazido do tempo da glória para a nossa atual situação.
Fica aqui exposta o que seria a minha conduta diante dessa variedade de devoções as quais sempre me encantaram, por cuja manutenção lutei ferozmente no Em Defesa da Ação Católica; incumbe a nós sermos a ilha que transporta tudo isto intacto no meio das labaredas.

O que mais prejudicou a vitória do Sagrado Coração de Jesus

 

Há um ponto sem o qual esse conjunto não pode ser tratado: é a nota militante.
A devoção ao Sagrado Coração de Jesus teve suas formas sentimentais, com abusos de toda a ordem que poderiam ser objeto de um histórico.
Tratar, por exemplo, de algo sobre o Coração militante de Jesus arrepiaria todos os devotos formados – não teologicamente, mas pela prática ordinária – na identificação entre o Coração Sagrado de Jesus e a ternura. De maneira que qualquer coisa que excluísse a ternura seria contrária à devoção considerada perpétua e exclusivamente terna do Sagrado Coração de Jesus.
Essa concepção conduziu a uma das consequências mais funestas na Igreja no período pré-conciliar. Muito antes de ser convocado o Concílio Vaticano II, a temática sobre o Inferno tinha quase desaparecido da pregação comum da Igreja. Ela se encontrava em alguns exercícios espirituais, mas assim mesmo tratava-se do Inferno uma vez ou duas, quando muito!
Por quê? Porque Deus, Criador de todas as estrelas, de todos os corações de mãe, de todas as formas de beleza e de ternura, não poderia ser visto como o Criador do Inferno, aplicando sua sabedoria infinita em estabelecer formas de tormento infinitas, no sentido de que não cessarão jamais. Portanto, uma espécie de militância que deverá continuar depois do Juízo Final. Isso silenciado preparava a condenação das Cruzadas.
Tudo isto constitui um bloco inserido no tema do Sagrado Coração de Jesus, das suas promessas, esperanças, dos seus adoráveis mistérios, das suas demoras e do seu perfeito amor a nós.
No meu modo de entender, o que mais prejudicou a vitória do Sagrado Coração de Jesus foi o fato de determinadas pessoas piedosas, afeitas à “heresia branca”4, adotarem uma linguagem certamente muito ortodoxa, mas acentuando uma só nota.
Isso determina no espírito das almas que se consagram uma espécie de unilateralidade que, a meu ver, prejudica muito a presença combativa da Igreja no grande prœlium para o qual ela está chamada.
O Sagrado Coração de Jesus é o símbolo físico, material, do que são as disposições, o ânimo, a mente d’Ele vista, certamente, no seu sentido amoroso. Mas Ele não contém apenas o caráter pacífico na acepção corrente da palavra, é também beligerante.
O amor é pacífico e procura evitar o combate tanto quanto possível, mas traz necessariamente consigo o desejo da luta, quando ela é irremediável para alcançar a vitória justa e deter o mal nos limites em que seja indispensável contê-lo. Para isto é necessário um ódio sagrado ao mal e aos que o promovem.

De onde haver uma espécie de necessidade de que essa devoção abranja tanto as disposições amorosas, no sentido até de carinhosas, do Sagrado Coração de Jesus para conosco, mas também a ira d’Ele contra os seus adversários. E, portanto, despertando em nós uma posição de ira, de quem já não tolera de braços cruzados a situação e, caso todos os meios persuasivos se tornarem ineficazes, está disposto a fazer andar os acontecimentos para frente, de qualquer maneira justa e santa. Isso era algo que, de ponta a ponta, faltava na mentalidade das associações promotoras da devoção ao Sagrado Coração de Jesus.

 

Espírito de Cruzada

Se consideramos a presente situação, com católicos moles que não combatem, em grande parte isso vem de uma certa unilateralidade da linguagem sobre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus, e que abrange depois outras formas de devoção, por onde o espírito dos cruzados verdadeiramente parece ter naufragado nos meios católicos.

Ora, admitir que o espírito de Cruzada naufragou na Igreja seria afirmar que a Esposa de Cristo errou, em determinado momento ela andou mal, o espírito de Cruzada não é próprio a ela, e a devoção ao Sagrado Coração de Jesus representa uma estimável retificação desse espírito.
Ora, em face disso nossa posição não é de fazer silêncio sobre a devoção ao Sagrado Coração de Jesus – isto nunca! –, mas de reparar essa lacuna, de maneira a tornar essa devoção atraente para aqueles a quem a graça chama para a luta.
Se tivesse tempo para isso, eu me deliciaria em pegar toda a literatura sobre o Sagrado Coração de Jesus e analisar debaixo desse ponto de vista: a ira no Sagrado Coração de Jesus. O que se faria não só procurando alguma repercussão disso na linguagem das aparições, mas também colhendo no Evangelho os exemplos dessa cólera sacrossanta. Com efeito, quem vibrou de indignação ao enxotar os vendilhões do Templo foi o Sagrado Coração de Jesus, que sofria, recebia a repercussão do que a mente d’Ele conhecia e execrava no grau que sabemos.

Mas esta seria uma retificação respeitosa, sem nada de panfletário ou capaz de desviar. No fundo, é apenas o preenchimento de um vazio no mosaico que torna o quadro completo.
Vindo o Reino do Coração Imaculado de Maria, uma de nossas preocupações deve ser a de mostrar que esse exílio da ira santa representou, em última análise, uma das principais causas da ineficácia crônica das coisas católicas.v

(Extraído de conferências de 19/2/1995 e 5/3/1995)

1) Cidade da França onde Jesus apareceu diversas vezes a Santa Margarida Maria Alacoque, no convento das irmãs da Visitação.
2) Sacerdote francês Fundador da Congregação do Santíssimo Sacramento (*1811 – †1868).
3) Do francês: bandeja, tabuleiro.
4) Expressão metafórica criada por Dr. Plinio para designar a mentalidade sentimental que se manifesta na piedade, na cultura, na arte, etc. As pessoas por ela afetadas se tornam moles, medíocres, pouco propensas à fortaleza, assim como a tudo que signifique esplendor.v

Uma vida inteira consagrada ao serviço de Deus, de Maria Santíssima e da Santa Igreja Católica Apostólica Romana!

Há 25 anos entrava na eternidade um varão de Deus!

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A TFP vem manifestar toda a sua gratidão a Deus, pela mediação da Santíssima Virgem, por ter feito surgir esta obra pela iniciativa providencial e bendita de Plinio Corrêa de Oliveira.

Por ter sido um Fundador, a dimensão de sua pessoa, de suas ideias, de sua atuação alcança um patamar que não se restringe aos dias de sua vida terrena.

E ele foi um autêntico Fundador e inspirador de uma grande família de almas, que deu origem a diversas correntes de opinião, associações e iniciativas de índole civil e religiosa pelo mundo afora.

Até hoje, passados 25 anos de sua entrada na eternidade, seu nome é uma verdadeira bandeira, um divisor de águas, porque “o fundador encontra-se na situação de ter que ir contra a corrente e ser sinal de contradição”, explica o Pe. Fabio Ciardi . E continua: “Denuncia frequentemente com a palavra uma determinada situação eclesial, como ocorre com o profeta do Antigo Testamento; mais ainda, é ele mesmo, feito palavra viva, que se converte em denúncia com sua própria vida e ação, atraindo o ódio e a perseguição dos que se sentem ameaçados no seu cômodo viver”. (F. CIARDI, Los fundadores, hombres del Espíritu, pp. 274-275)

Muito combatido e também elogiado em vida, a figura de Dr. Plinio vai se tornando com o correr dos anos mais compreendida por uma parcela crescente da opinião pública, inclusive porque muitas de suas previsões e análises – inverossímeis para tantos na ocasião de sua formulação – vão sendo confirmadas pelos fatos.

Nesse sentido, comenta um autor: “Ao aproximarmo-nos [dos fundadores] deparamo-nos com algo que não entendemos; e, inclusive, quando imaginamos conhecê-los bem, cada vez que refletimos sobre eles, descobrimos algo novo. Como explicar este mistério, esta riqueza inesgotável? Simplesmente pelo fato de que, ao encontrarmo-nos com um Fundador, nos achamos diante do mistério de Deus: no Fundador, e através dele, é o próprio Deus que atua”. (Il Carisma dei fondatori, Roma, 1974,p.11. Apud, Antonio Romano, Los Fundadores, Profetas de la Historia, pp. 63-64)

E no caso de Dr. Plinio, tendo em vista a sua vocação de fazer face à Revolução – movimento multissecular, que abrange todo o agir humano para levar a sociedade civil e a Santa Igreja a uma situação oposta à desejada por Deus –, o seu olhar abarcava, a bem dizer, todos os horizontes possíveis, conforme ele mesmo definiu a sua luz primordial:

“Uma visão arquitetônica e harmônica, monárquica e aristocrática de todo o universo material e espiritual criados, desde um grão de areia até o mais alto Anjo, ressaltados os pontos que a Revolução procura combater”.

Os Fundadores podem ser analisados e examinados sob muitos aspectos, mas só há uma maneira de compreender a fundo a sua pessoa: amando-a!

Foi, com efeito, o amor à Santa Igreja a característica da longa e heroica existência de Dr. Plinio, a ponto de ele se emocionar ao ouvir a referência à sua catolicidade.

Conforme seu desejo, sobre os seus restos mortais figura o significativo epitáfio:

Vir catholicus, et apostolicus, plene romanus 

Varão católico, apostólico, plenamente romano.

No momento em que se completa um quarto de século de seu encontro com Deus, a TFP quer celebrar esta data adaptando e aplicando a seu Fundador as palavras que um dia ele escreveu no jornal Legionário:

Plinio não dobrou nunca e nem sequer um só joelho diante da Revolução.

Plinio sempre teve a Lei de Deus escrita no bronze de sua alma. E não permitiu que as doutrinas deste século gravassem seus erros sobre esse bronze, que sagrado a Redenção tornou.

Plinio Corrêa de Oliveira amou, como o mais precioso dos tesouros, a imaculada pureza da ortodoxia e recusou qualquer pacto com a heresia, suas obras e infiltrações.

Na tormenta, na aparente desordem, na aparente aflição, na quebra aparente de tudo aquilo que para ele seria a vitória, Plinio é aquele que confiou, que jamais duvidou, mesmo quando o mal parecia ter vencido para sempre.

Plinio é o filho, o heroi e o paladino da confiança! Quanto mais os acontecimentos pareciam desmentir a voz da graça que lhe dizia — “vencerás” —, tanto mais ele acreditou na vitória de Maria!

Unida a ele, portanto, a TFP ecoa esta sua verdadeira proclamação de Fé:

 

“Estou certo de que os princípios a que consagrei minha vida são hoje mais atuais do que nunca e apontam o caminho que o mundo seguirá nos próximos séculos.

Os céticos poderão sorrir. Mas o sorriso dos céticos jamais conseguiu deter a marcha vitoriosa dos que têm Fé.” (conclusão do Auto-retrato Filosófico)

Grandeza infinita

Ao adorar o Homem-Deus, Dr. Plinio buscava explicitar o cume de suas perfeições infinitas, cujos maravilhosos aspectos, aparentemente antagônicos — compaixão, cólera, serenidade, seriedade, perdão, gáudio, tristeza — deveriam enfeixar-se em um ponto supremo.

Durante toda a vida, na contemplação de Nosso Senhor Jesus Cristo, o ponto mais alto da minha admiração é considerar como Ele é perfeitíssimo debaixo de todos os pontos de vista. E procurar na personalidade d’Ele o ponto supremo, no qual todas as virtudes convergem para uma que é um sol de todas as outras.

Píncaro de toda a Criação

Como é esse ponto? Se pudéssemos ver isso n’Ele, como O consideraríamos?

Imaginem uma catedral composta de numerosas ogivas que se sucedem umas às outras, desde a porta principal até o presbitério, e — existe isso em certas catedrais — há uma ogiva mais alta que abarca todas as outras. Qual é, em Nosso Senhor, essa ogiva suprema?

Gosto de figurar que é uma grandeza a qual contém todos os abismos de perfeição d’Ele. Por exemplo, analisando toda a Criação, considerar aquilo que podemos chamar o ponto alfa de todo o criado, o ponto mais alto que, em última análise, é Ele mesmo, porque é o Homem-Deus. Enquanto Deus, Ele está infinitamente acima dos seres criados, mas enquanto Homem é o píncaro de toda a Criação.

Outro aspecto: uma seriedade infinita, olhando todas as coisas pelos seus mais altos e mais profundos aspectos, pela ordenação que as coisas têm entre si, e amando-as enquanto tais, porque são e devem ser assim.

Depois, uma serenidade insondável, que absolutamente não é indiferença para com os outros. Pelo contrário, um amor a cada ser, sobretudo às criaturas humanas, um amor transcendente do qual não podemos nem ter uma ideia!

Se o olhar d’Ele pousasse sobre uma multidão com dez milhões de pessoas, e nós pudéssemos acompanhar esse olhar enquanto incidindo sobre uma delas, ficaríamos conhecendo como ela é, como é o amor d’Ele para com ela, qual o gáudio que Ele tem se essa pessoa for fiel, e a tristeza se for infiel. Que amor, que alegria e que tristeza!

É um olhar cheio de serenidade e de seriedade, compreendendo o que vale cada criatura humana, disposto a fazer-lhe todo o bem possível, e amando-a totalmente. De maneira que essa pessoa, se salvando, é para Nosso Senhor um estremecimento de alegria.

Mas se ela se perde, é uma iracúndia sublime! As tempestades do mar mais terríveis não são senão brincadeira em comparação com isso. E quando Ele expulsa alguém para o Inferno, então ficamos pasmos do horror que Jesus tem àquela criatura que até o fim não quis atender o chamado d’Ele, e que por causa disso se precipita no Inferno. Não podemos ter ideia do que é a cólera se não pensamos na cólera divina de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Grandeza fulgurante de Nosso Senhor

Ao mesmo tempo em que n’Ele existe esse amor e essa cólera, há uma compaixão enorme, porque Nosso Senhor sabe perfeitamente que todos nós, homens, fomos postos nesta vida para sofrer, somos filhos de Adão e Eva e, portanto, herdamos o pecado original, temos defeitos e estamos na Terra para purgá-los e expiá-los, sermos fiéis e irmos para o Céu.

Jesus manda as provações, as dificuldades, as tormentas, e Ele mesmo prepara para nós a solução, arranja um jeito de, suportando-as e vencendo-as, acabarmos sendo fiéis.

Considerar que tudo isso em relação a todos os homens, desde o primeiro até ao último, cabe naquela mente e naquele Coração, nos dá uma ideia da grandeza d’Ele. Perto da qual, o que adianta dizer que fulano é um grande homem? Ninguém é grande, todo o mundo é pequeno, insignificante diante da grandeza fulgurante de Nosso Senhor.

A consolação d’Ele quando via — porque conhecia o futuro — os cruzados montarem a cavalo e irem até a Terra Santa para libertar Jerusalém! Que alegria! Ele via São Fernando tomar Sevilha, e pouco depois Isabel e Fernando conquistarem Granada, e o reino maometano acabar. Nosso Senhor exultou de alegria pensando no grande São Fernando, que vingaria a glória d’Ele. Tudo isso são grandezas fulgurantes.

Mas, ao mesmo tempo, lembrando o bom pastor que tem pena de sua ovelha, tira-a do carrascal, leva-a sobre os ombros e a cura. E o pai do filho pródigo que perdoa, etc. Há uma pluralidade tão grande de aspectos, que ficamos sem ter o que dizer.

Eis a grandeza, a majestade de Nosso Senhor, fazendo com que queiramos muito a invocação que está na Ladainha do Coração de Jesus: Coração de Jesus, de majestade infinita, tende compaixão de nós!

Majestade do abandono

Este é também o divino equilíbrio que há no Coação de Jesus. Por exemplo, a serenidade, a calma e a visão geral das coisas que Ele conservou durante sua Paixão.

A agonia no Horto é uma perfeição de equilíbrio e de majestade. Ali Nosso Senhor entra diretamente em colóquio com o Padre Eterno e tratando de todos os destinos do mundo, vertendo gotas de seu Sangue. E, depois, a majestade do abandono! Quer dizer, tão grande que nenhum homem conseguiu ficar junto d’Ele.

Portanto, a soledade, a tristeza, mas tudo tão equilibrado, tão extraordinário, que se a pessoa tomasse o trabalho de raciocinar um pouco sobre isso, sairia mais equilibrada e menos nervosa.

Uma pessoa que conhecesse o grande São Fernando — o qual conquistou terras sem conta aos mouros e que, de fato, foi quem os expulsou da Espanha — e tratasse com ele, seria impossível falar com o Santo sem ter diante dos olhos continuamente a ideia: esse expulsou os mouros. E na hora em que ele pedisse água para beber, talvez se pusesse de joelhos por causa dessa ideia, indissociável da noção da mouraria enxotada da Espanha, e da coragem do grande São Fernando.

Ao menos eu não saberia olhar para ele sem ter isso em mente.

Assim também, se eu conhecesse São Tomás de Aquino — o Doutor que é como um sol da Igreja Católica —, como me seria possível vê-lo passar por uma estrada, ainda que distante, montado a cavalo e meditando sobre um ponto de Filosofia, e não imaginar que dentro daquela cabeça estava nascendo um sol? Sol de inteligência, de sabedoria, de santidade. E o que vale mais do que tudo é a santidade, evidentemente.

Antegozo do Céu

Diante de Nossa Senhora também pensaríamos tudo isto, mas com uma particularidade.

Imaginar, por exemplo, Nossa Senhora, que foi virgem antes, durante e depois do parto. Durante o nascimento de Nosso Senhor Ela se conservou virgem; como esse mistério se deu?!

Outro episódio da vida de Maria Santíssima: quando Ela notou a perplexidade de São José, viu seu esposo passar por aquele sofrimento sem nome, e percebeu a santidade dele que não duvidou d’Ela em nenhum momento. O demônio com certeza queria que ele duvidasse de Nossa Senhora; São José não duvidou em nenhum instante, mas resolveu retirar-se. E a tristeza com que ele se acomodou sobre a cama para dormir, antes de partir pela estrada para o desconhecido, porque era o homem que estava colocado na maior perplexidade que houve na História.

Quem sabe se Ela o olhou dormindo em paz, mas afogado na dor? E se Ela de repente notou — quando já era quase madrugada, perto da hora de ele se levantar e partir, no último sonho noturno — a fisionomia de São José se iluminar como um sol, e percebeu que na última hora Deus teve pena dele e revelou-lhe o que havia?

Ele no sonho viu o Anjo, não acordou logo, mas pouco depois um vulcão de alegria estourou dentro dele. São José ficou junto à porta do quarto de Nossa Senhora prostrado, à espera do momento em que Ela saísse, osculou o chão e os pés d’Ela, e a Virgem Santíssima entendeu tudo e nunca falaram sobre nada. É uma coisa para lá de sublime!

Conversar sobre temas desses é antegozar o Céu. Imaginem a hora em que cheguemos ao Paraíso e vejamos, de repente, São José com aquele bastão e aqueles lírios, cercado de uma coorte intérmina de Anjos, mas com uma alegria enorme no olhar porque estava vendo Nossa Senhora a pouca distância dele. E um pouco mais adiante Nosso Senhor, que sem ser filho dele segundo a carne, mas sim segundo a lei, sorriu para ele e disse: “Meu pai!”

Só de vermos essa cena teríamos uma felicidade própria para encher a eternidade.

Tenho a impressão de que, diante de Nosso Senhor e de Nossa Senhora, o tema é tão grande que a graça penetraria em torrentes dentro de nós para, por assim dizer, pensar em nós e por nós a respeito desses temas, porque não somos dignos, nem estamos à altura de cogitar convenientemente sobre isso.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 12/1/1992 e 31/1/1993)

O olhar sereno e penetrante de Jesus

Há certas descrições que superam a própria fotografia. Um exemplo característico é a conferência na qual Dr. Plinio, entre outras coisas, descreve o quadro de Giotto representando o beijo de Judas. E interpreta a repercussão na alma do traidor da pergunta de Nosso Senhor: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?”

O perfeito convívio entre o líder e os liderados supõe algo que seja o mais possível parecido com a autoridade entre o pai e os filhos. Mas de um pai que conheça perfeitamente o seu “métier” de pai — sua função, sua missão —, e compreende que faz parte dessa missão algo que é insubstituível: o querer bem. Não se reduz a isto, mas é uma coisa indispensável.

Censura e perdão

Ora, para querer bem é preciso ter entendido aquele a quem se quer. Os homens são desta maneira: para conseguir querer bem depois de ter entendido, é preciso uma forma de perdão, de suavidade, de mansidão que faça com que se consiga querer bem.

Quem é objeto desse sentimento, se for uma pessoa reta, não pode deixar de se sentir profundamente tocada. Essa é a escola que se aprende no Sagrado Coração de Jesus, no Coração Imaculado de Maria.

Por exemplo, na frase de Nosso Senhor a Santa Margarida Maria Alacoque: “Este é o Coração que tanto amou os homens e por eles foi tão pouco amado”, percebe-se pela redação que há um reproche, uma censura, mas há ao mesmo tempo um perdão.

Nela está contido o pensamento de que — apesar de quererem pouco a Nosso Senhor e Ele fazer uma censura, mostrando aos homens que essa atitude não está bem — isso é feito com tal amor pelo lado bom deles, e com tanta esperança de que se deixem tocar, que há qualquer coisa no homem que o seu lado duro, rebarbativo, pode, pela ação da graça, amolecer de repente e a pessoa ficar outra: agradecida, compreendendo que a montanha das suas imperfeições não levantou contra si um inimigo na Pessoa d’Aquele contra Quem as imperfeições foram levantadas.

A ovelha rebarbativa no meio do carrascal

Existe, portanto, um perdão suave, largo, enorme, infatigável e que, antes mesmo de a falta ser cometida, como que já foi esquecida. E o ofendido age como o bom pastor com a ovelha rebarbativa que se meteu pelo carrascal: é preciso ir pelo meio dos espinhos para pegá-la com jeito, porque a ovelha, que deveria ser jeitosa, não balir à toa e compreender o esforço daquele que já está metido no carrascal por causa dela, e não aumentar seu trabalho, pelo contrário, é caprichosa, cheia de gemidos, não suporta nada. Então, qualquer coisa que se faça ela esperneia, bale de um modo dolorido como quem diz: “Está doendo, está doendo! Você está querendo me tirar daqui? Tire mesmo, mas não deixe doer. Onde é que já se viu infligir-me essa dor?” Reclamando assim contra aquele que a está salvando.

Nós todos somos homens e sabemos que reações como essas podem nos vir ao espírito, e quanto nos toca — tendo feito coisas dessas em tal quantidade, que ficamos cegos e perdemos a noção de quanto fizemos — percebermos, em determinado momento, que nem aquele montão de ingratidões foi capaz de vencer aquela misericórdia. E que há a mesma doçura, a mesma bondade, o mesmo perdão, o mesmo desejo de ajudar absolutamente imutável.

Quando a alma sente isto e é tocada por uma graça especial, chegou a hora da vitória do Sagrado Coração de Jesus ou do Imaculado Coração de Maria.

Nosso Senhor Jesus Cristo é supremo em todos os sentidos da palavra e, abaixo d’Ele, Nossa Senhora é suprema. Sendo Eles exemplos supremos, devemos imitá-Los nas ocasiões da vida particular — nas coisas pequenas, médias e grandes — em que recebemos ingratidões brutais, às vezes estúpidas, subestimas bárbaras, e não nos incomodarmos.

Alguém dirá: “Mas Dr. Plinio, e a hora da punição não chega?”

Eu respondo: “Chega até para o Sagrado Coração de Jesus!”

Há certos graus de recalcitrância tão tremendos, que não se compreende como a maldade do homem chega a esse ponto.

Ósculo da traição

Sempre me causou repulsa máxima e furiosa a indiferença de Judas, naquele episódio em que ele trai Nosso Senhor. Os algozes não sabiam quem era Jesus e, portanto, a quem deveriam prender. Judas então diz: “Aquele a quem eu oscular, a este prendei!”

Quer dizer, a infâmia chega a esse ponto de ele, para indicar a sua vítima, a oscula, sabendo que recebe um ósculo de volta e, portanto, fazendo da troca dessa bondade, dessa amizade, o preço da traição!

Aí, naturalmente, há os limites que tudo tem, e se prepara a descarga da vindita de Deus no que ela tem de mais terrível. Nosso Senhor ainda é suave com ele, mas de uma suavidade com qualquer coisa da doçura de um acento materno e do estrépito de um trovão, quando ele diz: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?”(1)

O famoso Giotto pintou um quadro figurando o ósculo de Judas a Nosso Senhor. Judas é apresentado mais baixo do que Jesus e beijando-O de baixo para cima, com uma beiçorra que parece estalar de carnes, um beiço sujo e molhado que ele cola com a sua saliva imunda no rosto divino do Redentor. Testa pequena, cabelo que desce até bem embaixo e já saindo desgrenhado da raiz da pele, e um jeito subserviente diante de Nosso Senhor, ou seja, traindo e ao mesmo tempo bajulando.

E Jesus com um olhar sereno, como quem penetra no fundo daquele lodaçal de infâmia, ainda para ser bom porque Ele é justo. Quer dizer, Ele quer fazer com que Judas tenha medo, pelo menos, já que não foi tocável pela bondade. Se a contrição não o tocou, que ele se salve ao menos pela atrição. Então vem aquela pergunta: “Judas, com um ósculo trais o Filho do homem?” Mas nesse “Judas” tem uma pergunta, como quem diz: “Meu íntimo, meu filho, aquele que está sempre comigo… Logo você?!”

Se Judas procurasse Nossa Senhora, obteria o perdão

Judas não dá resposta, mas vê a reação de Nosso Senhor e percebe-se que ele sai levando impresso na alma o castigo do pecado cometido. Ele não consegue mais desamarrar-se daquela pergunta, e aquilo repercute nele ainda que não queira: “Com um ósculo… com um ósculo… com um ósculo…! Judas! Judas! Judas! Tu trais… tu trais…” Trais quem? “O Filho do homem!”

Todas as perfeições de Nosso Senhor vêm ao espírito de Judas, e ele, imundo, levando a sua sacola de dinheiro, raciocina: “Traí por causa disso…”

E pela primeira vez aquela alma adoradora do dinheiro vê quanto este é pouco, ainda quando seja muito dinheiro. É tal o horror diante do que fez, que ele vai ao Templo e joga aquelas moedas no chão. Pensa libertar-se daquela figura, daquela pergunta, e do afeto envolvente daquela censura. Mas ele nem quer libertar-se da censura, nem deixar-se envolver pelo afeto. Se ele se deixasse envolver pelo afeto, iria procurar Nossa Senhora, prostrar-se-ia diante d’Ela e diria:

“Senhora, eu sou tão infame que pela primeira vez Vos chamarei de Mãe, apelando para esse extremo de bondade, porque Vos pedirei um perdão que só uma mãe concede ao seu filho, e mais ninguém. Minha Mãe, Mãe virginal e imaculada, que apesar disso também sois Mãe deste asqueroso, nojento, traidor, ganancioso, desleal, imundo que sou eu, aqui estou, pior do que qualquer leproso. Mas para Vós continua verdade que sou filho, e vos peço: curai-me!”

Todos os caminhos estariam abertos para ele. Mas ele não queria que o afeto o envolvesse, não queria voltar e pedir perdão.

Mas ele também não podia viver sem pedir perdão, porque o remorso era tremendo. Então, não podendo viver com, não podendo viver sem, a “solução” por ele encontrada foi de não viver. Resolveu se matar. Foi a uma figueira, pendurou-se ali e morreu.

Pode-se imaginar aquele corpo asqueroso pendente, malcheiroso, os urubus já esvoaçando em torno dele, as garras do Inferno já o segurando e dando risada, e pelos dedos do vento balançando em várias direções, quebrando de encontro à árvore, e ele se deixando fazer. Até o momento em que ele, por assim dizer, fechou as portas do Céu. Até o último instante ele não pediu perdão. Vemos, então, as vias de Deus infinitas, perfeitas, modelo da conduta de todo aquele que exerce uma autoridade espiritual ou temporal.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 28/1/1993)
Revista Dr Plinio 201 – Dezembro de 2016

ENCONTRO COM O CORAÇÃO EUCARÍSTICO DE JESUS

Certa vez perguntaram a Napoleão Bonaparte qual havia sido o dia mais feliz de sua vida. Apesar de toda a glória que lhe obtiveram seus ribombantes triunfos militares e políticos, ele não hesitou  em responder: “Foi o dia de minha Primeira Comunhão”. Este é um exemplo muito ilustrativo de quanto uma alma fica marcada, de modo indelével, pelo momento em que se abre para ela o  convívio com Nosso Senhor sacramentado. Tal se passou também com Dr. Plinio, naquele 19 de novembro de 1917, quando se aproximou pela primeira vez da Sagrada Eucaristia. Décadas mais  tarde, ele se comprazeria em recordar essa inesquecível data:

 

A atmosfera que cercava as Primeiras Comunhões, no meu tempo de menino, era muito especial, porque fora organizada segundo a doutrina e a mentalidade de São Pio X, o Pontífice das Primeiras Comunhões. Antes dele, a tendência corrente era de que uma pessoa só se aproximasse da Santa Mesa quando inteiramente adulta, não sendo raro o caso de homens e mulheres que comungavam pela primeira vez nas vésperas de seu casamento.

Essa atitude era determinada pela compreensível ideia de que a Comunhão é algo por demais sagrado para que as crianças a recebam, pois não têm critério para comungar com o respeito e a devoção necessárias.

O que importa é o grau de inocência

São Pio X, entretanto, entendia de modo diferente, e colocou a questão em outros termos. Dizia ele: “Não se trata de saber o que a criança é capaz de pensar, e sim que grau de inocência ela tem. Porque, se fôssemos raciocinar em função de sua capacidade intelectual, então não deveríamos batizá-la nos primeiros dias após seu nascimento”.

Um juízo muito acertado, cujo desenvolvimento é este: no momento do Batismo, embora o recém-nascido ainda não pense, a recepção do Sacramento significa para ele uma comunicação de graças extraordinárias, que agirão sobre sua alma até o dia em que comece a fazer uso da razão. E, mesmo nesse início da vida de pensamento, as graças do Batismo lhe serão de extrema valia, guiando seus primeiros passos e o fortalecendo na Fé. É esse um dos motivos primordiais pelos quais a Igreja inteira batiza as crianças logo depois do nascimento.

E análogo princípio aplicou São Pio X, ao instituir a Primeira Comunhão para as crianças. Quer dizer, tomando em consideração que estas, via de regra, ainda conservam sua inocência, ser-lhes-á ocasião de graças superabundantes receberem a Sagrada Eucaristia.

Para tanto, basta compreenderem a mudança de substância operada na hóstia no momento em que é consagrada, quando ela passa a ser, verdadeiramente, Nosso Senhor Jesus Cristo, em seu corpo e sangue, alma e divindade.

Trajes especiais

São Pio X determinou que a festa da Primeira Comunhão para as crianças fosse cercada de grande solenidade. Datam daí os ornamentos de que se revestem as igrejas nessas ocasiões, e os trajes  cerimoniosos com os quais meninos e meninas se apresentam para receber a Jesus sacramentado, símbolos do coração inteiramente inocente e virginal que vai de encontro ao seu Salvador.

Recordo-me de que, na minha época (e talvez esse costume se conserve até hoje), as meninas apareciam diante de Nosso Senhor, o Divino Esposo das almas, trajadas de noiva, com vestido longo,  o véu cingido na fronte por uma grinalda de flores brancas, e brancos também os sapatos.

Por sua vez, os meninos deveriam ir tão bem vestidos quanto o permitiam as posses de seus pais. Aqueles com mais recursos mandavam confeccionar uma roupa especial para a ocasião. E no meu tempo, o hábito de Primeira Comunhão masculino era a cópia do uniforme solene de um dos colégios mais famosos do mundo — o “Eaton”, da Inglaterra: uma roupa muito pomposa, consistente em paletó e calça de casimira inglesa e corte elegante, camisa engomada, de colarinho duro, gravata escura. No braço esquerdo fixava- se um laço de fita branca, em cujas pontas brilhavam pingentes dourados. O branco simbolizava a castidade e a virgindade do menino; o dourado lembrava a sua fé.

Depois da cerimônia, a festa No dia da Primeira Comunhão, após o ato na igreja (comumente realizado pela manhã), as respectivas famílias costumavam se reunir nas casas dos meninos, onde as  mães haviam preparado uma grande festa para celebrar a data memorável. Além dos parentes, eram convidadas todas as crianças com quem o filho ou a filha tinha relações, não sendo raro  ajuntarem-se vinte ou trinta pimpolhos, em torno de uma lauta mesa. Naqueles idos de 1917, a maravilha que fazia a alegria da meninada era o prato de chocolate com o que chamavam de creme “chantilly”. Como São Paulo era, entretanto, uma cidade ainda nos primórdios de seu desenvolvimento, não se conhecia o verdadeiro “chantilly”, mas apenas uma deliciosa imitação feita com clara de ovo batida. Então vinham aquelas copiosas porções de chocolates sob o “creme francês”, e as crianças se regalavam. O passo seguinte era fazer as honras às frutas, sorvetes, refrescos e toda espécie de sanduíches e doces.

Terminado o banquete, começava a correria pelo jardim da casa, tanto maior quanto mais extenso fosse o terreno à disposição dos infatigáveis meninos. O cansaço só se apresentava à noite, quando se aprontavam para dormir, depois de terem rezado.

Assim transcorria o dia da Primeira Comunhão. “Hoje, pensem apenas no Santíssimo Sacramento” Para mim, minha irmã e uma prima que fez a Primeira Comunhão conosco, as coisas se passaram de modo diferente. Dª Lucilia, exímia organizadora de tudo, entendia que a comemoração em família não deveria acontecer na volta da igreja.

Julgava ela que, se realizada a festa no mesmo dia, poderia haver o risco de a criança, levada pela imaginação infantil, amanhecer pensando mais nos festejos do que na Sagrada Eucaristia. Então, com seu afeto e cuidado todo especial, mamãe nos chamou alguns dias antes para nos colocar a par do programa.

Disse-nos: — Vocês devem entender que a festa não vai ser no mesmo dia. Nessa data vocês devem se preocupar somente com a Primeira Comunhão. É como se fosse um feriado: não vão estudar nem se entregar a atividades muito dispersivas. Devem passar o dia vestidos com o hábito de Primeira Comunhão e terem atividades tranquilas, dentro de casa, sem ir ao jardim, e evitar de olhar pelas janelas, para não se distraírem com o movimento da rua. Passeiem de uma sala para outra, de um quarto para outro, andem pelos corredores, rezando e procurando lembrar-se do que se deu com vocês nessa ocasião. Quer dizer, pensem e concentrem a atenção no Santíssimo Sacramento. Depois, no dia seguinte, faremos a comemoração em grande estilo.

Um passo muito sério a ser dado

Nós três havíamos tido um curso de catecismo particular, ministrado por um padre amigo da família. Durante algumas semanas, ele nos explicou os pontos essenciais da Doutrina Católica, contou-nos a História Sagrada, etc., preparando-nos dessa forma para o solene encontro com Nosso Senhor Eucarístico. Dª Lucilia, por seu lado, também nos predispôs para a Primeira Comunhão, antes e mais do que tudo pelo ambiente que ela criava em casa, todo feito de piedade, de inocência, de inteira e ilimitada confiança nela, bem como de imenso afeto. Além disso,  mamãe nos ajudava a entender melhor as lições recebidas do padre, e nos fazia ter uma alta ideia do que significava a graça da Primeira Comunhão. É supérfluo dizer que a materna e zelosa  assistência dela nos foi de imenso proveito.

Assim, a preparação feita com muito cuidado pelo padre, somada às explicações de Dª Lucilia, que completavam os ensinamentos do sacerdote, e depois o programa traçado por ela dias antes da  Primeira Comunhão, fez-nos ver como era sério o passo que íamos dar. Evidentemente, esse ambiente criado em torno de nós era próprio a determinar todo o grau de recolhimento que uma criança possa ter.

Eu, particularmente, fiquei muito compenetrado e fiz o propósito de observar esse recolhimento quanto me fosse possível, nos meus nove anos. Depois de termos sido examinados, e verificado que  sabíamos o bastante para comungar, fizemos parte de uma turma de Primeira Comunhão da paróquia de Santa Cecília. Foi um mundo de crianças, vestidas de acordo com a situação financeira dos pais. Algumas estavam ricamente trajadas, levando nas mãos lindos rosários e livrinhos de oração encadernados com forro de madrepérola. Os de certas meninas eram até recamados de pérolas nas bordaduras. Outros eram impressos com várias cores e também muito bonitos.

A primeira confissão…

Antes desse grande dia, porém, fiz a minha primeira confissão. Tomei-a com tanta seriedade que, para não me esquecer de nenhum dos meus pecados na hora de dizê-los ao padre, fiz uma lista deles. Imagine-se o que podiam ser as faltas de um menino de nove anos… Entretanto, apesar da pouca gravidade que elas poderiam encerrar, tive de me arrepender a duras penas por havê-las cometido! Pois a Fräulein Mathilde, a governanta alemã que nos levara para confessar, era muito exigente. Antes de eu me dirigir ao confessionário, ela me perguntou: — Você está arrependido de seus pecados?

Eu entendia que estar arrependido era sentir vontade de chorar pelas faltas cometidas. Como tal sentimento não me viera, respondi: — Não!

Inflexível, a alemã (de quem conservo saudosa e boa recordação) replicou, num tom imperativo: — Faça uma Via-Sacra! Achei que, para uma alma dura como a minha, que não se arrependia dos seus pecados, a solução era mesmo rezar a Via-Sacra… Foi o que fiz com toda a convicção. Quando voltei para junto da “Fräulein”, ela me perguntou de novo: — Está arrependido? — Não! Creio que fiz umas duas ou três Vias-Sacras… Afinal, Nossa Senhora teve pena de mim e me concedeu algo vagamente parecido com uma tendência a chorar pelas faltas cometidas.

A governanta voltou à carga: — Você sente agora verdadeiro pesar?

Pensei: “As lágrimas estão vindo… ” Respondi então: “Sinto!” Ela imediatamente ordenou: — Vá fazer a confissão! Entrei no confessionário, puxei a lista dos meus pecados e a li para o sacerdote. Ele ouviu tudo com muita bondade e me deu a absolvição. Na saída, tomado pela importância do momento, não me dei conta de ter deixado cair aquela folha de papel. Quando já havia voltado para casa, mexendo nos bolsos dei pela falta dele. Então procurei Dª Lucilia e lhe disse: — Mamãe, eu preciso voltar à igreja para pegar tal papel, porque se alguém encontrar a lista dos meus pecados, ficarei em má situação.

Ela logo percebeu que era coisa de criança, mas ficou satisfeita ao ver como eu tinha levado a sério a minha primeira confissão. Enquanto nós dois conversávamos, aproximou-se uma lavadeira que trabalhava em casa, pessoa muito boa, piedosa, chamada Madalena. Ela vinha trazendo umas roupas dobradas para guardar num armário e, naturalmente, prestou atenção na nossa conversa.

A Madalena achou graça na minha aflição de menino, e, voltando-se para mamãe, disse: — Ah, eu dava tudo para conhecer os pecados do Plinio. Então, Dª Lucilia, a senhora me dá licença e eu vou  depressa à Igreja de Santa Cecília para ver se pego a lista dos pecados do Plinio!

Eu fiquei ultrajado ao extremo, mas vi que mamãe não tomou ao trágico nem ficou com medo de revelações sensacionais. E eu, sabendo que ela não deu importância, até me esqueci do fato. A  Madalena foi à igreja e não encontrou a lista.

Com certeza um sacristão, ou alguma faxineira limpando o recinto sagrado, encontrou aquilo e jogou fora. Estava acabado. Eram já não sei mais que pecados, mentirinhas não sei de que tamanho. Creio, porém, que os ter relacionado para não deixar de acusar nenhum e pedir perdão a Deus por todos, demonstra a compenetração com que me preparei para o Sacramento da Penitência, enquanto prelúdio da Primeira Comunhão.

Alegria por vestir o “Eaton”

Numa outra ordem de preparação, também tive de experimentar o famoso “Eaton” que usaria no dia solene. Obrigação para mim bastante enfadonha, pois toda a minha vida tive não pequeno desagrado em experimentar roupas: põe-se alfinete, tira alfinete, vira de cá, vira de lá, traçam-se marcas de giz… Nunca gostei disso. Enfim, o alfaiate contratado por Dª Lucilia fez os ajustes necessários, e chegou à conclusão de que o “Eaton” estava muito bom. Foi essa igualmente a opinião de mamãe, que em tudo exigia perfeição e não se contentaria com um Eaton mal cortado. O  alfaiate seria muito bem tratado, receberia o justo pagamento pelo trabalho que fez, mas sob a condição de este estar perfeito. Ela achou que estava.

O encontro com Jesus Sacramentado

Na manhã seguinte, minha irmã, minha prima e eu nos dirigimos à Igreja de Santa Cecília, levando nossas velas que, assim como as das outras crianças, seriam acesas em determinado momento da Missa. O Santo Sacrifício, um tanto longo, dado que solene e cantado, foi seguido por mim com muita atenção, embora eu não soubesse ainda tudo quanto a Missa significa. Porém, o simples fato de estar presente a uma cerimônia da Igreja, pela qual eu já nutria imensa veneração, era o bastante para me fazer assistir àquilo com espírito de oração, com enlevo e profundo respeito.

Afinal, chegou o momento da Comunhão. Formaram-se, separadamente, a fila das meninas e a dos meninos que, pela primeira vez, receberiam em suas almas a visita de Nosso Senhor Sacramentado. Pelo favor de Nossa Senhora, comunguei com muito recolhimento e procurei fazer minha ação de graças com intenso fervor e devoção.

Quando, terminada a celebração litúrgica, eu retornava para casa, estava radiante de contentamento. Junto com minha irmã e minha prima, passei o dia em recolhimento, conforme o programa estabelecido por Dª Lucilia. No dia seguinte houve uma festa soberba, com guloseimas de toda espécie, as costumeiras correrias pelo jardim, etc.

Preparação para uma vida de amor à Igreja Para concluir essas reminiscências de uma data que me é tão cara, gostaria de frisar um ponto que responde à seguinte pergunta: de que me serviu a Primeira Comunhão? Sendo o marco inaugural de uma série de comunhões, ela preparou e fortaleceu minha alma para enfrentar os combates que, dali a pouco, eu teria de travar pelo bem e pela virtude. Ajudou meu espírito a ter o vigor necessário para opor resistência — dolorida, mas forte e decidida — às solicitações más, e quantas vezes pecaminosas, que se apresentam a todo adolescente e a todo jovem.

Ela me preparou para uma vida que, graças à Santíssima Virgem, procurou se fazer sempre de piedade, de vontade de cumprir perfeitamente os mandamentos, e de entranhado amor à Igreja, para  cujos serviço e triunfo eu quis dedicar continuamente todos os meus esforços.

 

Plinio Corrêa de Oliveira
Revista Dr Plinio 20 (Novembro de 1999)

Variedades do modo de ser de Nosso Senhor

Em menino, Dr. Plinio analisava atentamente uma imagem de Nosso Senhor que havia no quarto de Dona Lucilia, bem como as existentes na Igreja do Sagrado Coração de Jesus. Contemplando-as ele foi discernindo a mentalidade do Divino Salvador, discernimento que depois seria confirmado ao conhecer os episódios narrados nos Evangelhos.

 

Percebe-se que os Apóstolos e todas aquelas pessoas que tinham o convívio com Nosso Senhor — exceto naturalmente Nossa Senhora — não O haviam entendido bem. Parece que com o curso do tempo, depois de equívocos primeiros, eles acabaram pelo menos não formando ideias erradas a respeito d’Ele, mas vê-se que eles não tinham formado uma ideia inteira a respeito de Jesus, exatamente como era a Pessoa d’Ele. E isso era de uma importância transcendental para eles amarem a Nosso Senhor como deviam ter amado.

Amar e compreender

Quer dizer, se eles tivessem amado como deviam, teriam compreendido como podiam; se tivessem compreendido como podiam, teriam amado como deviam.

Assim é o jogo entre o amor e a compreensão. E eles não tiveram esse amor assim. O resultado é que custou para reconhecerem a Nosso Senhor como Deus.

Consideremos que n’Ele há duas naturezas — a humana e a divina —, unidas na Pessoa do Verbo. Portanto, não existem duas pessoas, mas uma única Pessoa divina. Há, pois, n’Ele uma verdadeira alma e um verdadeiro corpo ligados entre si como em todos os seres humanos, mas essa alma e esse corpo estão unidos hipostaticamente à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade.

Por isso, cada vez que Ele falava, era o Verbo de Deus Quem falava. Cada vez que Ele olhava, era o Verbo de Deus Quem olhava. Cada vez que Ele fazia qualquer gesto, era o reflexo mais perfeito que se possa imaginar da natureza divina na humana.

Portanto, manifestava uma santidade, uma perfeição, uma superioridade, da qual nós não podemos ter uma ideia, nem sequer remota, se não nos ajudar a graça de Deus. Se fizéssemos uma ideia tão exata quanto podemos e devemos de como foi Ele, então teríamos começado a amá-Lo como precisamos amar.

Fisionomia e ação de presença de Nosso Senhor

A voz, os olhares, os gestos d’Ele… Que espelho da Santíssima Trindade! Nós precisamos reconstituir um pouco disso para O amarmos como Ele merece ser amado, e não haver o equívoco de O amarmos como Ele não foi, com todo o perigo que isso traz consigo.

Esse é um trabalho muito delicado que, se não fosse a ajuda da graça, não se faria na alma de nenhum homem. Porque, primeiro, é muito mais alto do que a cogitação de qualquer homem. Em segundo lugar, seria preciso utilizar dados muito imponderáveis; ser um psicólogo do outro mundo para recompor.

Por exemplo, no que diz respeito à fisionomia de Nosso Senhor, um dia em que sentimos certo tipo de consolação sensível ao estar perto do Santíssimo Sacramento, isso produz um determinado efeito que nos deve levar a pensar sobre como era a fisionomia de Quem está causando sobre nós esse efeito. E como era, portanto, o divino rosto d’Ele e — coisa altamente própria ao Santíssimo Sacramento — sua ação de presença.

Então, devemos procurar analisar e entender o que Ele está comunicando. E, tomando os episódios do Evangelho, imaginando-O exercendo sobre nós — se presenciássemos um deles — um efeito daqueles relacionados com o fato, compreenderíamos um tanto o que foi o trato com Nosso Senhor.

Relacionando a fisionomia d’Ele com episódios de sua vida

Tenho a impressão de que, com o Batismo e as primeiras impressões religiosas, nos é dada uma certa primeira noção d’Ele, que vai se formando e aprimorando dentro de nós. Por exemplo, posso me lembrar de como isso foi se constituindo aos poucos na minha própria alma.

Graças a Deus, eu tomei como ponto de partida que a fisionomia apresentada habitualmente pelas imagens de Nosso Senhor era fiel, e que aquele era o semblante que Ele tivera em sua vida terrena.

Sempre dado a examinar as pessoas pelo rosto, instintivamente eu analisava por longo tempo a fisionomia d’Ele. Sobretudo naquela imagenzinha do Sagrado Coração de Jesus, presente no oratório do quarto de mamãe.

Longamente, atentamente, meditadamente — quanto possa caber numa criança — eu a analisava. E ela condizia com a imagem que há num altar lateral da Igreja do Sagrado Coração de Jesus, também com a existente no teto dessa igreja, e formava assim uma resultante, uma espécie de figura central, que era o essencial dessas várias imagens, e como eu imaginava mais ou menos a Ele.

Então vinham os episódios da vida de Nosso Senhor, e eu procurava me perguntar se aqueles fatos estavam de acordo com aquilo que imaginava da mentalidade d’Ele. E percebia que não só estavam de acordo, mas que os episódios tomavam um realce extraordinário, imaginando-os praticados por aquele Varão, com aquele rosto e aquela atitude. Aquela fisionomia explicava o episódio, e o episódio explicava a fisionomia. E eu me sentia, portanto, na verdadeira pista de entender como Ele era.

Harmonia extraordinária entre as virtudes opostas

Depois, eu procurava também ver o reflexo disso na Igreja. Dado que Nosso Senhor tinha tal fisionomia e, portanto, devia ter tal personalidade, se Ele precisasse fazer uma obra como a Igreja, tê-la-ia feito como ela é? E chegava à conclusão que sim, que era inteiramente o que Ele devia fazer.

De onde, então, uma confirmação da Fé originária que, pela bondade de Nossa Senhora, recebi no Batismo.

Como O imagino?

Antes de tudo, contemplar a Humanidade santíssima de Nosso Senhor causa-me a impressão de cogitações enormemente superiores a tudo que se possa imaginar. Pensamentos de uma elevação, de uma altura, sem proporção com nada. Entretanto, sem podermos chegar nem de longe até onde Ele atingia, alguma luz desses pensamentos brilhavam em Jesus, e como que se via sua Alma inundada dessas luzes das quais Ele estava cheio.

Seria mais ou menos como um homem que não pode entrar numa catedral à noite, mas nota pelo lado de fora que as luzes estão acesas dentro. Ele vê, portanto, a coloração dos vitrais iluminados; aproxima-se e ouve a música; avizinha-se ainda mais, o perfume do incenso chega ao seu olfato. Ele se encanta com a catedral, onde não entrou. Os sinais da catedral o fazem perceber algo da sua beleza.

Assim se passava comigo em relação a Nosso Senhor. Percebia qualquer coisa de uma elevação prodigiosa, mas desde o primeiro momento, desde o ponto mais profundo onde eu O poderia compreender, com essa característica de uma fusão harmoniosa, em nível indizivelmente alto, das virtudes mais opostas, formando uma harmonia extraordinária.

De maneira que, por exemplo, uma força incomparável, mas de uma bondade incomparável também. Uma severidade inquebrantável, mas ao mesmo tempo um perdão de uma doçura sem fim. Um poder incomparável de tranquilizar, mas, de outro lado, também de mover para a luta e para a batalha. Uma superioridade divina, porém ao mesmo tempo uma possibilidade de descer, já não digo à última pessoa, mas a um cachorrinho, e fazer-lhe um benefício qualquer. Estou certo de que, se um cachorrinho se aproximasse de Nosso Senhor, Ele se alegraria com isso.

Seu sono e seus silêncios

Isso tudo indica a superioridade maravilhosa d’Ele, mas também sua imensidade, para que virtudes tão opostas, levadas a um grau tão alto, possam caber em Jesus com tanta harmonia, na qual estaria exatamente o que melhor o meu olhar pudesse pegar na sua natureza humana, como transparência da Divindade, da graça n’Ele.

E por isso, muita gravidade, uma seriedade enorme! Impossível é não só vê-Lo dizer algo que não seja muito elevado, mas falar algo atrás do qual não haja uma elevação infinita, uma coisa infinitamente perfeita.

Realmente, se tomarmos no Evangelho tudo quanto Nosso Senhor disse, já nas primeiras palavras adquire um tamanho que não se sabe o que pensar!

E mesmo quando Ele dormia, seu sono era um arqui-sono, de uma perfeição, um equilíbrio, uma doçura, uma força, um poder de manifestação, uma santidade tal que se uma pessoa, que entendesse Quem e como Ele era, pudesse apenas passar uma noite inteira vendo-O dormir, consideraria essa noite como a mais feliz de sua vida.

Os silêncios d’Ele! Há silêncios que cantam, outros feitos para a poesia, outros ainda para a prosa, para dizer, com afabilidade e intimidade, determinadas coisas que só o silêncio fala.

Por exemplo, o Santo Sudário tem um silêncio eminentemente eloquente. Jesus está ali morto e nada n’Ele pressagia uma palavra. Entretanto, o que Ele diz sem falar é uma enormidade!

Nosso Senhor, independentemente de falar, tinha uma imensidade de coisas dessas que explica porque os discípulos ficavam tão intrigados sobre Quem era Ele.

Construir uma catedral para abrigar uma varinha utilizada por Ele

Suponhamos que nesse silêncio Ele faça as coisas mais simples: colhe uma florzinha e a contempla, ou com uma varinha que tenha na mão risca um pouco o chão. Tem-se vontade de dizer:

— Não mexam nesse riscado, porque Ele riscou!

Alguém retrucará:

— Isso não quer dizer nada!

— Não mexam! As mãos de Nosso Senhor tocaram aqui e ficou alguma coisa que é sacrossanta, na qual não se deve mexer. Se você não entende vá embora, mas isto não sai daqui, ficará para sempre! Voltarei aqui todos os dias e me ajoelharei diante disto, e só não vou oscular o chão para não estragar o desenho que Ele fez.

Para abrigar aquela varinha mandaríamos construir uma catedral! Entretanto essas coisas são apenas símbolos de uma realidade muito superior: o chão riscado por Ele representa a alma de cada um de nós, e a varinha, nosso livre-arbítrio que Ele tentou inclinar de um lado para o outro.

Tenho a impressão de que a tintura-mãe do pensamento de Nosso Senhor era uma síntese harmônica, mas também frequentemente contrastante, entre o que Ele é, o que estava fazendo e aqueles para quem Ele estava agindo. Quer dizer, Jesus conhecia a imensidade de dons prodigalizados por Ele, via a indiferença com que esses dons eram recebidos, por vulgaridade de espírito, falta de senso metafísico, de senso sobrenatural, em uma palavra, falta de amor das pessoas beneficiadas. Contudo, Ele não se afastava daquelas almas, continuava a perceber o que tinham de bom e procurava ainda elevá-las, mas pensava a fundo sobre essa ingratidão e Se entristecia.

Ele, olhando para cada um de nós, conhece inteiramente como somos. Com o olhar Ele saberia tratar a cada indivíduo, de tal maneira que, conforme Ele quisesse, a pessoa se sentiria vista até o fundo da alma nos lados ruins, ou nos lados bons. Naqueles, com uma rejeição por onde o indivíduo teria vontade de fugir do seu próprio pecado; nestes, com uma atração tal que a pessoa teria vontade de multiplicar por cem quintilhões a sua virtude, logo de saída!

Mas, por uma bondosa condescendência para com os homens, Nosso Senhor não olharia inteiramente de um jeito nem de outro, a não ser nas situações excepcionais, para as pessoas poderem viver ao lado d’Ele.

Os episódios da vida d’Ele são todos maravilhosos. Mas não me impressiona tanto este ou aquele fato, quanto as variedades do modo de ser pessoal d’Ele, enquanto andava de um lado para outro.

Jesus chora pela morte de Lázaro e depois o ressuscita

Sempre me impressionou a cena diante do sepulcro de Lázaro. Primeiro, a bondade com a qual Jesus chora junto ao sepulcro, porque Lázaro morreu. E depois, como que não podendo conter a sua própria dor, brada: “Lázaro, vem para fora!”, com um brado que eu imagino majestoso e fendendo a sepultura! E a vida volta em Lázaro. É uma coisa majestosa!

Imaginá-Lo recebendo a censura de Maria Madalena: “Senhor, se tivesses estado aqui, meu irmão não teria morrido”.(1) É, portanto, uma censura. Parecia estar insinuando que, pela relação de amizade existente entre os dois, Ele tinha obrigação de ter salvado Lázaro da morte. E, naquele momento, talvez Ele tivesse parecido a Maria Madalena ligeiramente tisnado de culpa.

E como Jesus se portou nessa ocasião em que Ele não lhe deu nenhuma justificação? Foi para a sepultura, e quase pareceu justificar a censura, chorando. Então, por que deixou morrer? Por que não veio mais cedo? Ela disse que Ele poderia tê-lo salvo! Ele chora a morte que poderia ter evitado? Que pranto é este?!

Nosso Senhor deu algo melhor do que salvá-lo da morte: foi tirá-lo da morte! Ele fez Lázaro ressuscitar! Não há o que dizer…

Podemos imaginá-Lo vendo Maria Madalena, com certeza prostrada diante d’Ele, chorando com emoção dulcíssima, e Ele atendê-la como quem diz: “Minha filha, Eu te perdoo. Tu deverias ter compreendido que Eu não tenho falta! Mas dei-te um dom que não esperavas.”

Depois, sabendo que a partir daquele milagre os fariseus tomariam a deliberação de matá-Lo, passar perto deles e fitá-los… Que olhar!

Pensemos na sucessão de atitudes de Jesus, por exemplo, indo a Betânia descansar. Pode-se imaginar alguém mais adorável do que Ele, repousando no convívio afável com Marta, Maria, Lázaro e os Apóstolos? Ou com Nossa Senhora, certamente na vida cotidiana, ou na residência de Lázaro, recebendo as honras, conversando na intimidade, etc.?

Como Nosso Senhor Se sentiria consolado de tanta infâmia, ao ver o que havia de maravilhoso naquelas almas que Ele estava formando na virtude! É uma coisa maravilhosa!

Tudo isso junto, as várias atitudes d’Ele se sucedendo, sobretudo no momento de passar de uma posição para outra, me deixam especialmente encantado.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências de 6/9/1984 e 11/7/1991)

 

1) Jo 11, 32.

 

Sagrado Coração de Jesus:: Desejo de admirar e contempla

Revelando aspectos íntimos de seu relacionamento com o Sagrado Coração de Jesus e com Maria Santíssima, Dr. Plinio manifesta o caráter anti-igualitário dessas devoções em sua alma e na de sua extremosa mãe.

 

Outro dia veio-me ao espírito a seguinte ideia: Há pessoas que, ao rezarem, têm toda a impressão de que estão falando com um Santo, ou com Nossa Senhora, ou com Nosso Senhor Jesus Cristo, e que eles estão ouvindo e considerando, como um de nós, o que dizem. Outras têm a impressão de que há um vidro entre elas e os Santos, e que não se podem pôr propriamente na presença deles.

Profunda humildade ao rezar a Nossa Senhora

Comigo dá-se uma coisa curiosa: sinto uma superioridade muito grande dos seres celestes. E com Nossa Senhora nem se fale! Eu A sinto como no alto de uma ogiva a uma distância colossal de mim, e que assim mesmo existe certo atrevimento de minha parte em me aproximar. Aquilo que São Luís Maria Grignion diz, “petit vermisseau et misérable pécheur”(1), é bem a impressão que eu tenho.

Estou certo de que Ela me ouve, mas numa impassibilidade de ícone, e aquilo que eu digo chega lá por um eco amortecido, fraco, distante. Maria Santíssima toma conhecimento completo, mas da parte d’Ela não procede nada para mim porque não sou digno disso. É a impressão. Eu sei, teologicamente, que não é assim, e rezo com a certeza de que não é, mas a impressão é esta.

Numa ou noutra rara ocasião tenho a sensação de que Nossa Senhora, daquela distância, sorri com uma afabilidade muito grande. Mas não sei bem se sou eu que subo ou Ela que baixa. Mas sinto que a distância diminui e é como se eu falasse muito de perto com Ela. Mas é de relance. Depois restabelece aquela distância…

Não é uma distância in oblíquo, mas como se houvesse um vidro grossíssimo entre a Santíssima Virgem e eu.

Contudo, gosto muito dessa distância, porque satisfaz o meu desejo de admirar e contemplar.

Alegria em sentir-se insignificante

A tendência de minha piedade é de imaginar Nosso Senhor Jesus Cristo, Deus, Nossa Senhora, todos os Anjos e Santos enormes, com distância extraordinária, por assim dizer fabulosa. E, sentindo-me muito pequeno, de algum modo nessa separação sinto uma união. É o prazer de me sentir insignificante. Aquilo me enche de contentamento, de uma alegria, de uma dedicação, de espírito filial que corresponde a um modo de ser.

Sei, teologicamente, que não há essa distância. Ela é Mãe de misericórdia, e se eu tivesse uma dúvida neste ponto, me desintegrava na hora; então nada é nada na terra de ninguém. Mas, enfim, é o modo de ser de cada um.

Por exemplo, confiança. Quando eu falo da confiança, e até de senti-la, é como se partisse daquele alto nicho um verão suave, perfumado, mas a distância continua a mesma.

Isso pode ser visto de modos diferentes, mas creio que para mim, provavelmente, é uma via.

Tudo o que estou dizendo é muito natural, não tem nada de extraordinário, é comum. Mas outro dia eu estava rezando o Rosário e isso sobreveio assim: pela primeira vez ocorreu-me rezar os mistérios do Rosário como quem estivesse junto a Nossa Senhora, comentando com Ela o que eu pensava de cada um daqueles fatos que se passaram. E um pouco como quem pergunta o que Ela teria sentido naquela ocasião. Mas achei que essa era uma situação diferente das habituais. Rezei até muito bem o Rosário assim.

Digo isso para mostrar como é uma coisa individual, que não deve ser tomada como padrão.

Desde então tenho rezado o Rosário assim, com proveito. Neste caso, vem certa impressão de proximidade d’Ela, fazendo contraste com o que acabo de dizer.

A vida consiste em cumprir os desígnios de Deus

Um corolário saudável disso é a ideia preconcebida e preestabelecida de que Deus, Nossa Senhora têm o direito de nos tratar — se pudéssemos nos exprimir assim, sem blasfêmia — do modo mais “despótico” que se possa imaginar, permitindo que nos aconteçam as coisas aparentemente mais irracionais, mais arbitrárias e mais pungentes. Isso é inteiramente natural, porque corresponde a essa desproporção. Portanto, não temos que reclamar, nem estranhar, nem alegar direitos, nem nada disso.

Um aspecto que me impressionava em mamãe era notar como se davam os acontecimentos mais imprevistos e, debaixo de certo ponto de vista, mais ilógicos, e ela os tomava como se fossem a coisa mais natural do mundo.

Mamãe não tinha direitos a alegar perante Deus. Ele era Senhor dela, como de todas as criaturas, podendo fazer o que bem entendesse. Ela sabia que isso correspondia a desígnios de misericórdia d’Ele. Mas existe aquele mistério: Nosso Senhor Jesus Cristo pediu para se afastar o cálice d’Ele “se possível”. Ora, para Deus tudo é possível! É um mistério, porque Deus quis que o holocausto fosse até lá. E da parte do Divino Redentor, a plena submissão, como quem dissesse: “Diante de vossos desígnios absolutos, de vossos direitos, de vossa sabedoria Eu Me dobro. Dai-Me apenas forças”. Isso eu notava em Dona Lucilia muitíssimo.

Ela rezava com muito afeto, e sua devoção ao Sagrado Coração de Jesus, a Nossa Senhora, era muito impregnada de ternura. Mas ela rezava com muito empenho quando queria obter as coisas. Entretanto se não as obtivesse, era com uma naturalidade, uma paz de alma, a maior do mundo!

Naquela fotografia em que mamãe tem aproximadamente 50 anos de idade, ela está cheia disso. Encontra-se na voragem da dor, mas não pergunta a Deus por quê. É assim e deve ser assim. Há um desígnio de Deus e a vida consiste em cumprir os desígnios de Deus. E, portanto, se é assim não se discute. O que é uma posição fundamentalmente anti-igualitária.

Estado de espírito de Dona Lucilia em relação a Deus

Mas eu tenho visto gente que é protuberantemente o contrário disso, e em quem percebo laivos de atitudes deste gênero: “Eu peço a Deus, mas Ele, lá nas coisas d’Ele, a mim não atende. Atende a todo mundo, mas não a mim. Ele comigo faz o contrário do que eu queria que acontecesse”.

Não era esse, absolutamente, o estado de espírito de Dona Lucilia. Esse estado de espírito de um terceiro em relação a Deus, que cobra, invectiva, alega direitos, não está naquela fotografia, em nada!

Mais ainda: no fundo, essa paz que vemos no Quadrinho(2), sob o qual se poderia escrever a frase: “Ite vita est”, é como quem diz: “Eu fiz a vontade d’Ele até o último elemento, bebi todo o cálice de fel, até a última gota. Mas está bebido, e agora chegou minha hora de ajudar os outros”.

Sem dúvida, uma das coisas mais tocantes para mim naquela fotografia, em que mamãe tem cerca de 50 anos, é essa resignação dela no meio da dor. Vê-se que ela não entende e há qualquer coisa de uma pergunta ansiosa: “Como será, por que será?”, mas sem o menor laivo de revolta, de inconformidade, nem nada. É como alguém que adora o mistério do sofrimento que está tendo.

Isso partia de uma ideia altíssima que mamãe tinha de Deus.

Aliás, uma coisa curiosa: ela nos ensinou o Pai-Nosso de um modo um pouquinho diferente da fórmula corrente. Não sei se no tempo dela se tinha introduzido, talvez no hábito brasileiro ou pelo menos de Pirassununga, um acréscimo que era: “O pão nosso de cada dia nos dai hoje, Senhor…” Este “Senhor” não está na oração dominical. Durante algum tempo eu rezei o Pai-Nosso assim. Depois, por conformidade com a Igreja, suprimi o “Senhor”. Mas a minha alma se regozijava de poder dizer este “Senhor”. O “Senhor” calha ali com uma precisão, no ritmo da oração, muito bem. Suprimi, porque a Igreja ensina de um modo diferente. Quando mamãe rezava alto, conosco, nas Sextas-feiras Santas, não saía o “Senhor”. Eu acho que ela, em certo momento, se deu conta também e suprimiu.

Mas era a ideia do “Dominus” cheio de bondade, de misericórdia, de carinho, que estava no espírito dela. Ela tinha muito isso, mas muito!

Doçura dentro na majestade

No tocante ao meu relacionamento com Nosso Senhor, com Nossa Senhora, eu sempre tive e continuo a ter aquela certeza, que a graça de Genazzano(3) corroborou, de ser atendido diante de problemas que envolvem a Causa Católica. Por exemplo, quando recebi a graça de Genazzano, eu me lembro perfeitamente da impressão que tive de Nossa Senhora tomando aquela atitude, fazendo-me entender o que Ela quis que eu compreendesse. Ali sim, não tenho dúvida nenhuma de que foi uma graça, uma promessa.

Depois me contaram que o provincial dos agostinianos do Santuário, a quem haviam narrado o fato, disse que esse tipo de graça era característico da Mãe do Bom Conselho de Genazzano. Para mim, não tem dúvida nenhuma: Nossa Senhora me concedeu essa graça.

Lembro-me de que o quadro d’Ela como que se animou. Não tive nem um pouco a impressão de que Ela estivesse falando comigo. Mas o quadro como que adquiriu uma vida dulcíssima, revelando um interior d’Ela, mas com uma suavidade inexprimível. Porém, conservando sempre essa superioridade. De maneira que era um sorriso materno dentro do esplendor e da majestade.

Segundo meu modo de ser, essa doçura que se manifesta dentro da majestade é mais doce do que fora da majestade.

Naquele hino a Nossa Senhora do qual gosto muito, “Si quæris cœlum, anima, Mariæ nomen invoca…”, há uma estrofe que é assim: “Pelo nome d’Ela fogem as culpas e as trevas, as dores da doença e as úlceras. Aos vencidos se desatam os pés, e para os navegantes as águas se tornam mansas.”

Acho muito bonito! Aliás, toda essa cançãozinha é linda! “Se tu queres o Céu, ó alma, invoca o nome de Maria. Pois aos que invocam Nossa Senhora as portas do Céu se abrem”.

São grupos de quatro estrofes. É como se houvesse asteriscos entre elas:

“Glória a Maria, Filha do Padre e Mãe de Nosso Senhor Jesus Cristo, Esposa do Espírito Santo, por todos os séculos dos séculos, amém.”

“Pelo nome de Maria os Céus se alegram, os Infernos estremecem. O céu, a terra e os mares, o mundo inteiro se rejubila.”

Tem muita candura.

Por exemplo, estou falando disso, mas não se dissocia de Nossa Senhora no Céu, altíssima, puríssima e, por causa disso, exercendo sobre a Terra essa ação benfazeja, enorme! Não há mares, não há trevas, não há coisas que Ela não domine, em razão de ser tão boa e estar tão alta.

Sensibilidade eucarística diante do Santíssimo Sacramento exposto

Já minhas Comunhões não costumam ser sensíveis. Aliás, tenho, por assim dizer, mais sensibilidade eucarística quando estou diante do Santíssimo Sacramento exposto do que quando comungo.

Em geral, quando estou diante do Santíssimo Sacramento, fico muito, mas muito tocado. A noção da presença d’Ele me comove muito. Mas na Comunhão, paradoxalmente, de um modo habitual, menos sensível. O que predomina é a presença de um Visitante desmedidamente grande, a Quem se trata de pedir. Daí calhar inteiramente, no meu modo de ser, o método de Comunhão sugerido por São Luís Maria Grignion de Montfort: pedir que Nossa Senhora venha à minha alma para recebê-Lo. E Ele encontrando-A como dona desta casa e fazendo-Lhe as honras por mim, tenho então muito comprazimento. Donde dirigir a Ele, por meio d’Ela, os atos de adoração, reparação, ação de graças e petição. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 6/7/1985)
Revista Dr Plinio 211 (Outubro de 2015)

 

1) Do francês: vermezinho e miserável pecador.

2) Quadro a óleo, que muito agradou a Dr. Plinio, pintado por um de seus discípulos, com base em uma das últimas fotografias de Dona Lucilia. Ver Revista Dr. Plinio n. 119, p. 6-9.

3) Ver Revista Dr. Plinio n. 21, p. 16-23.

Opto pelo Sagrado Coração de Jesus

Ainda menino, em suas cogitações a respeito do contraste entre dois mundos e duas mentalidades, Dr. Plinio viu-se diante de uma alternativa, cuja escolha orientaria toda a sua existência. Nossa Senhora o ajudou a fazer a opção certa e a adotar o verdadeiro caminho.

 

Quem me conhece pode ter a impressão de que sou compreensivo e sinto atração apenas pela classe aristocrática, e que não dou importância, não tenho zelo, estima nem desvelo pelas outras classes. Porque quando falo a respeito da classe aristocrática tenho um fogo especial, e isso indica certamente uma preferência; e em vez de uma “opção preferencial pelos pobres”, decorreria daí uma “opção preferencial pelos nobres”.

A vida em torno da Igreja do Coração de Jesus

Para verem o quanto essa impressão não é verdadeira, conto a tentação que para mim chegou a constituir o antigo Largo do Coração de Jesus(1).

Eu tinha entre 10 e 13 anos. A primeira nota que esse Largo apresentava era de muito pouco movimento, porque naquele tempo o automóvel ainda era artigo de luxo e não constituía transporte para qualquer pessoa com um pouquinho de conforto, como é atualmente. Por causa disso, o número de automóveis que transitavam por lá era bem menor do que hoje. Também não havia ônibus, o transporte coletivo era o bonde.

Uma linha de bonde percorria a Rua Barão de Piracicaba, que atravessa o Largo do Coração de Jesus. Os bondes iam e vinham, mas eram também raros, pois a população da cidade era pequena.

Por isso, o Largo era, antes de tudo, muito tranquilo e, eminentemente, habitado por uma pequena burguesia ou um proletariado aburguesado, com uma camada de operários — suponho que filhos de imigrantes — que tinham feito algum dinheirinho e comprado casinhas em torno daquele local.

Toda essa gente formava quase uma vida de aldeia muito aconchegada, em torno da igreja a qual, para a São Paulo daquele tempo, parecia enorme, com aquela torre muito alta que também parecia colossal, cujo carrilhão, ao meio-dia e às seis horas da tarde, tocava a melodia: “Louvando a Maria, o povo fiel, a voz repetia, de São Gabriel: Ave, ave, ave Maria…” Uma canção popular muito simpática e respeitável.

A atenção se voltava, então, para a imagem do Sagrado Coração de Jesus dourada, em cima da torre, com os braços abertos, indicando a receptividade do Coração d’Ele para todo o mundo. Aquele som enchia a praça.

Tinha-se a impressão de cada badalada ser uma nota de cristal que, quebrando-se em mil pequenas bolhas, penetrava em tudo.

Busto de Dom José de Camargo Barros

No centro do Largo há um busto do Bispo Dom José de Camargo Barros, que se tornou célebre por ter participado do naufrágio de um navio de passageiros chamado “Sirius”, vindo da Europa para o Brasil. Ele era um prelado de São Paulo e viajava com um colega de Pindamonhangaba(2), que fora sagrado bispo por São Pio X e nomeado arcebispo de um Estado do Norte do Brasil.

Em certo momento houve o naufrágio, e o número de salva-vidas era insuficiente para os passageiros. Dom José de Camargo Barros ficou com um salva-vidas, mas, não havendo outro para o futuro arcebispo, exigiu que este, absolutamente, aceitasse o seu. Ele o tomou e, com isso, conseguiu sobreviver ao naufrágio. Mas Dom José de Camargo Barros morreu.

Fizeram-lhe, então, no alto de uma coluna, um busto que a meu ver não dá a ideia de seu “martírio”, mas de um bispo muito bem assentado na vida, plácido, olhando o movimento que passa. Mas tinha-se a impressão de que, quando os sons das badaladas desciam sobre a praça e se multiplicavam sob a forma de bolhazinhas de luz e de cristal, Dom José de Camargo Barros, do alto de seu pedestal, dava uma bênção.

Quando anoitecia, às vezes pelas seis horas, a farmácia chamada “Farmácia Coração de Jesus” — o armazém parece que se denominava “Empório Coração de Jesus”, tudo se chamava “Coração de Jesus” ali em volta; eram outros tempos… — tinha, como em geral nas farmácias daquele tempo, uns globos de cristal enormes com matéria corante, vermelha, verde, azul, dourada, e atrás um foco de luz; aquilo formava uma luz ampliada que a mim, assaz colorista, impressionava muito; eu achava interessante ver aqueles focos de luz.

Bênção do Santíssimo Sacramento

Um pouco mais tarde, o sino do Coração de Jesus, que soava todas as horas, começava a dar outro sinal: era a bênção do Santíssimo Sacramento.

Quem estivesse no Largo poderia ver certo número de moradores que, das casas em volta, vinham chegando para a bênção. Formavam propriamente aquilo que se poderia chamar o “beatério”, o conjunto de beatos e beatas que caminhavam muito devagarzinho, conversando uma conversota que nunca acabava e nem se interrompia.

As beatas, senhoras sofridas na vida, com uns “xalezinhos”, uns arranjinhos, de quem tem suas economias… Os beatos, ou era gente que não trabalhava mais e vivia de rendazinhas, ou ainda exercia um trabalhinho metódico, pequenininho, que os esmagava um pouquinho mais a cada dia. Via-se que eles estavam sujeitos a um processo de achatamento, com o tempo iam ficando mais baixinhos, sumidinhos, as roupas mais rapadinhas, mas com a alminha contente e a vidinha arranjada.

Quando chegava a hora marcada, entrava o padre na igreja, expunha o Santíssimo, começava o “Tantum ergo” e por fim dava a bênção, enquanto tocava o sino; era um momento de muito recolhimento, muita piedade e elevação espiritual.

Depois, todos saíam. Tratava-se de um mundo que não era o meu, fechado para mim, mas eu queria saber como era e, por isso, ficava prestando atenção neles.

Sempre me interessou soberanamente a análise, a observação da vida. Saber como é esse, aquele, como vive, como pensa, para onde vai, como se relaciona com aquele, com aquela, com aquilo, como aconteceu tal coisa, como vai acontecer… Isso me atraía a atenção fabulosamente!

Não sei o que pensariam daquele menino curioso. Eu não contava a ninguém em casa, porque julgariam extravagância dedicar-me a essas cogitações sociais.

Eu percebia que, quando os beatos e as beatas entravam, eles eram como descrevi, mas quando deixavam a igreja, saíam com uma dimensão de ­alma muito maior. Certos reservatórios interiores de resignação, de sublimidade, de elevação de espírito, estavam reabastecidos até o dia seguinte.

O Sagrado Coração de Jesus os tinha dessedentado, a rogos de Nossa Senhora Auxiliadora, e eles saíam super-saciados; e se desfaziam na bruma ainda violácea do dia que estava se pondo.

A alta classe rural tradicional de São Paulo

E o menino curioso ia sozinho para casa fazendo reflexões… Eu andava três ou quatro quarteirões e chegava a minha casa, onde encontrava um outro mundo, que não o da pequena burguesia do Largo do Coração de Jesus.

Aos domingos, na Missa das onze horas, o aspecto do público da igreja era inteiramente diferente. As pessoas que, mais ou menos, representavam uma aristocracia local em São Paulo frequentavam essa Missa.

Viam-se chegar os bonitos automóveis, as senhoras de idade madura em bonitas toilettes, muitos dos homens ainda usando fraque e cartola por homenagem a Deus, Senhor de todas as coisas, a Quem eles iam visitar.

Quando eu era bem pequeno, meu pai com frequência ia de fraque à Igreja do Coração de Jesus. Ele dizia que em Pernambuco chamavam o fraque “a roupa de ver a Deus”.

Era um mundo em que aparecia muito do antigo donaire, algo de corte dessa espécie de aristocracia constituída pela alta classe rural tradicional de São Paulo.

Havia uma rua limítrofe que marcava o começo do mundo da antiga aristocracia rural: um mundo europeizado, aberto às ideias novas, com bastante dinheiro, e até luxo, com preocupações de progresso para si mesmo, de conforto, etc.; e com toda a agitação política, mundana, cultural, toda a alegria, todo o tom “hollywoodiano” que caracterizava aquele tempo.

Antipatia pelo jazz e amor ao órgão

O jazz era o grande escândalo sonoro de então. É preciso dizer que antipatizei com o jazz desde o primeiro momento em que o ouvi, assim como amei o órgão desde que tomei consciência de sua existência.

Meu ambiente doméstico era um misto de órgão e de jazz. A tradição, que inegavelmente havia, tocava o órgão. Mas assim como as badaladas desciam no Largo Coração de Jesus, também as cacofonias do jazz cobriam o mundo e entravam também na residência da Rua Barão de Limeira, 77, onde havia espíritos “aggiornati”(3) segundo o jazz, e outros ajustados à tradição, entre os quais Dona Lucilia e eu.

Eu estava inserido em toda aquela sarabanda, à qual não se pode negar certo brilho e o deleite da vida. E eu era sensível a esse brilho e a esse deleite. Quer dizer, a vida com luxo, as viagens para a Europa em navios-palácio com salões de dois andares, o turismo pelo Velho Continente, o palacete enorme em São Paulo, automóveis de luxo vindos da Europa, dos Estados Unidos…

Tudo isso me atraía muitíssimo, mas constituía um polo de atração inteiramente diferente do Largo Coração de Jesus. E, sem cogitar de minha vocação — pois eu ainda não tinha noção dela —, do ponto de vista meramente individual, cheguei a me pôr esta pergunta:

“O que me convém mais para levar uma vida agradável: integrar-me nesse mundo agitado e brilhante, mas trabalhoso, ou no mundo do Largo Coração de Jesus, nessa vidinha, vivendo à luz ou à sombra do Santuário, sem aventuras nem riscos, nem problemas, nem complexidades; simplesmente afundar-me no anonimato, destacando-me do meu meio como uma figura que some e afunda na penumbra agradável do Largo Coração de Jesus?”

Seriamente hesitei entre uma coisa e outra. De tal modo a atração nobiliárquica não é uma mania em mim, que os meus lados fracos ter-me-iam levado a me afundar na vidinha: “Ah! deixe ‘correr o marfim’… Eles que se arranjem! Vou levar uma vida sossegada, rezando e depois fazendo mais ou menos nada. Para que fazer alguma coisa? Desde que eu viva bem, nada mais me incomoda!”

O que me impediu de me deixar levar por essa hipótese foi uma noção do dever. Volto a dizer, não era a ideia da vocação, que ainda não se tinha esboçado em meu espírito; mas a noção de que cada pessoa que levasse consigo um nome histórico, e se afundasse nessa bruma, era como uma estrela que se apagaria no céu. Embora seja menos trabalhoso para uma estrela afundar na bruma a ficar cintilando pelos séculos dos séculos, a obrigação da estrela é cintilar.

Eu, Plinio Corrêa de Oliveira, tinha o direito de me afundar? Não! Essa opção, eu a exerci, portanto, não em virtude de uma ideia de comodismo, de vantagens, de prazer, mas do dever, vencendo o meu pendor naturalmente indolente.

Aristocracia paulista: trato cerimonioso e mobiliário das residências

Eu notava, entretanto, também nas pessoas da aristocracia, o conflito de duas influências. De um lado, a velha tradição portuguesa, muito afim em alguns pontos com a tradição francesa, pela qual a nota distintiva do homem educado era uma seriedade amável, até afável, mas principalmente seriedade. Secundariamente, como um ornato complementar, vinham a afabilidade e a amabilidade.

De maneira que se víssemos um desses senhores ou uma dessas senhoras andando sozinhos na rua, a fisionomia que faziam era séria, de quem estava cônscio de sua importância.

Se um menino ou um rapaz conhecido deles passasse perto, tinha a obrigação de cumprimentá-los, tirando o chapéu. O senhor respondia amavelmente o cumprimento, com um sorriso e erguendo discretamente seu chapéu-coco.  Às vezes puxava uma conversa, sempre composta e cerimoniosa: “Como vão os seus? Ouvi dizer que a Dona tal está adoentada… Já melhorou? Será que vamos nos encontrar de novo este ano em tal estação de águas? Eu gostaria tanto… Diga lá em casa…”

Por mais afável que tivesse sido a conversa, ao final, novo cumprimento tirando os chapéus de parte a parte. Quando o senhor, e mesmo as senhoras, tinham mais intimidade, batiam ligeiramente com a ponta dos dedos nos ombros do mais jovem, o que representava, simbolicamente, um abraço.

Esse trato cerimonioso encontrava seu correlato no ambiente e no mobiliário das residências.

Toda casa que se prezasse tinha um salão com móveis dourados estilo Luís XIV, XV, XVI, ou um pouco mais longe, Luís XIII, e a parede revestida de damasco, ou de papel vindo da Europa, também dourados, ou painéis de damasco de outras cores. Lustres de cristal.

Se as posses da família permitiam, o hall era de mármore. Cortinas de damasco, sedas, veludos, quadros a óleo, tapetes felpudos que abafavam o som de quem entrava nas salas.

Mesmo na intimidade do lar, o modo de as pessoas se dirigirem umas às outras era repleto dessa seriedade. Até a brincadeira era com um tom cheio de respeito, o qual constituía uma espécie de atmosfera de gás ou de líquido, no qual a vida inteira estava imersa.

Influência de Hollywood

Entretanto, tudo isso se foi abrindo para a influência de Hollywood. As músicas tocadas pelos discos nas vitrolas, as canções que se cantarolavam, as senhoras dedilhavam no piano ou os rapazes executavam no violino, tudo isso era “hollywoodiano”.

O resultado era a difusão de uma gargalhada superficial, agitada, estridente e sem significado profundo. Porque a influência de Hollywood era a da gargalhada, da brincadeirada, da semi-imoralidade sedenta da imoralidade completa, da aventura sôfrega: “cowboy”, tiros no teto, motocicletas, torcidas…

Eu percebia essas duas influências que se combatiam. Aquela seriedade sacral de outrora ia sendo enxotada pela superficialidade trivial, adoradora da máquina, do dinheiro, da corrupção. Tinha que dar na civilização moderna.

Muitas daquelas pessoas respeitáveis, que estavam com seus filhos e netos na Missa pela manhã, iam levá-los na sessão de cinema, à tarde.

Observei o seguinte: quando se encontravam na Missa do Sagrado Coração de Jesus, todo o lado tradicional deles vinha à tona e os dominava; quando estavam no cinema, ficavam cheios do espírito de Hollywood.

De onde me vinham ideias meditadas no meu silêncio, como esta: “Se esse aspecto tradicional floresce na Igreja do Coração de Jesus e em outras igrejas de São Paulo — aonde às vezes também vou à Missa —, mas não se desenvolve no cinema, há uma relação de aliança, de afinidade entre esse ambiente, essa Religião e esse lado bom; e existe uma relação, não de aliança, mas de antagonismo, entre a Igreja e esse lado ruim que se patenteia quando eles vão ao cinema”.

Para ilustrar esse pensamento, imaginemos o jazz sendo tocado na Igreja do Coração de Jesus. Uma blasfêmia! Ou um órgão executando música religiosa, para acompanhar certas fitas de cinema: parava o órgão ou a fita, porque os dois não iam juntos!

Donde eu concluía haver no cinema um princípio hostil ao Sagrado Coração de Jesus, enquanto que na vida tradicional, um princípio que procede d’Ele.

Eu olhava em torno de mim e pensava: “Que reação teriam essas pessoas se eu lhes dissesse que estou cogitando isso? Afirmariam que não é assim, que não estou entendendo nada, que esse antagonismo não se põe…” Porque eles não queriam fazer a opção, a escolha e, portanto, não desejavam confessar o antagonismo. O resultado é que eles deixavam a parte boa ser devorada pela má, como um câncer.

Eu dizia no meu íntimo: “Opto pelo Sagrado Coração de Jesus!”

Horror ao mofo e desejo de uma alegria sã e casta

Por tê-Lo conhecido e me deixado modelar por Ele, tanto quanto minha miséria permitia, eu estranhava uma coisa dissonante de Nosso Senhor. Por isso também, eu reconhecia n’Ele a regra a ser seguida qualquer que fosse o sacrifício, a batalha. E o critério para diferenciar o bem e o mal, a verdade e o erro, é estar consonante com o Sagrado Coração.

Isso é um ato de adoração, de devoção e supõe, evidentemente, rezar a Ele, visitar sua imagem na igreja d’Ele, tê-Lo em vista na imagem d’Ele em minha casa, e dirigir-me a Nosso Senhor por meio da Mãe d’Ele. Quer dizer, ser devoto, devotíssimo de Nossa Senhora, como canal necessário para chegar até Ele.

Estou cônscio, deliciosamente cônscio, até o fundo de minha alma, de que eu nunca teria chegado a nada disso se não fosse a intercessão de Nossa Senhora.

O que aconteceu com alguns outros que conheci, aparentemente grandes rezadores? De manhã, rezavam num manual, mas não tinham suficiente amor para, na hora do cinema, estar se lembrando d’Aquele a Quem tinham rezado; e evitavam a opção. Logo, cada vez mais a devoção ao Sagrado Coração de Jesus tornava-se uma fórmula, e a entrega à mentalidade do cinema, uma realidade.

Havia, ademais, um problema na dualidade jazz e tradição. É que a tradição aparecia tristonha, incapaz de suscitar alegria, vida, verdadeiro espírito de luta e algo que não fosse mofo. Era preciso um ato de Fé para acreditar que essa tradição tinha inspirado coisas como as Cruzadas, de tal maneira ela estava carregada de mofo.

Como a única forma de alegria estereotipada era a “hollywoodiana”, não havia uma fórmula para dar escoamento psicológico ao júbilo, para o qual a alma tem tendência, senão os padrões “hollywoodianos” daquele tempo. Por isso, para um católico, ser alegre era uma espécie de infidelidade. Em sentido contrário, ser tradicional, fiel à Igreja de sempre, parecia trazer como corolário ser tristonho, abatido. E eu tinha horror ao mofo e a tudo quanto não é vida.

Quando entrei para o Movimento Mariano, uma das metas que tive foi de fazer sentir que eu não renunciava nem um pouco à alegria sã e casta de viver.

Está assim, de um modo muito sumário, narrado, tanto quanto me é possível, um dos itinerários de minha alma rumo ao Sagrado Coração de Jesus. v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/12/1985)
Revista Dr Plinio 199 (Outubro de 2014)

 

1) Situado no Bairro Campos Elíseos, zona central de São Paulo.

2) Município da Região Metropolitana do Vale do Paraíba, ao Norte do Estado de São Paulo.

3) Do italiano: atualizados. Aqui tem o sentido de “estar na moda”.

Arquetipização, amor à cruz e seriedade

Desde a primeira infância, Dr. Plinio possuía uma tendência à arquetipização, que era alimentada pela frequência à Igreja do Sagrado Coração de Jesus. O ambiente, as imagens, o órgão lhe causavam encanto, mas ele sentia a necessidade de que ali também houvesse uma fortificação; e percebia que dentro daquela harmonia e beleza estava encravada a cruz.

 

Na Igreja do Coração de Jesus, em São Paulo, eu sentia como um estado de espírito que ficasse pairando pelo ar, uma mentalidade difusa que parecia dizer algo através de cada um dos elementos da decoração. O que havia de mais alto, mais eminente, mais preciso, se exprimia através da imagem do Sagrado Coração de Jesus, sugerindo o modo de Ele ser.

Uma “bonbonnière” de Sèvres

Tudo quanto via em mamãe era, para mim, um elemento integrante d’Ele. Primeiramente, percebi a Ele na Igreja do Coração de Jesus, da qual — por pasmoso que seja — o próprio Sagrado Coração de Jesus também é um elemento integrante.

Toda a vida, desde bem pequeno, houve no meu espírito uma tendência para a arquetipização. Não no sentido de me iludir, achando algo arquetípico quando na realidade não é, mas pensando mais ou menos o seguinte: “Se isso fosse perfeito, como seria?” E julgando mais pelo que aquilo deveria ser, do que pelo que era. Eu não tinha maturidade para exprimir isto assim, mas é o que estava no meu espírito. Suponho que fosse uma graça.

Dou um exemplo fora do ambiente da Igreja do Coração de Jesus.

Se eu visse uma “bonbonnière”, o mais importante para mim não era fazer a crítica dela, mas saber como ela seria se o plano do indivíduo que a fez tivesse chegado ao auge. Em seguida “decretava” — por pobreza de expressão, por falta de clareza de espírito, por uma porção de coisas — ser aquele objeto “mais bonito”, porque morava ali um plano mais bonito do que em outro objeto.

Lembro-me de que vovó tinha uma “bonbonnière” de Sèvres, daquele tempo em que se importavam as coisas da Europa às torrentes, a baixo preço. Não era um objeto pomposo, mas eu o achava lindo!

Com a partilha dos bens, isto ficou para uma tia minha, e lamentei que a “bonbonnière” não tivesse ficado com mamãe. Uns 30, 40 anos depois, numa das idas à casa dessa minha tia, vi a “bonbonnière” ao alcance de minha mão; e, não sem susto da dona da casa, peguei-a e comecei manuseá-la. Fingi não perceber o susto de minha tia, que temia que o objeto caísse no chão. Eu tinha fama na família de ser “quebrador”. Não era uma fama injusta…

Tive uma decepção ao analisá-la, e percebi que achava linda a “bonbonnière” que o artesão quisera fazer, não a que estava ali. Quando menino, não separava suficientemente a arquetipia da realidade, e julgava que a “bonbonnière’ linda estava de algum modo também presente ali.

O que acabo de descrever é muito menos raro do que parece. O espírito humano é correntemente propenso a isto.

As mitras ”preciosas” dos bispos

Conto algo característico desse processo de arquetipização, por onde mostro como ele é legítimo.

O velho carnaval paulista possuía aspectos dados ao suntuoso. Aquelas moças e mocinhas tinham fantasias de princesas do Oriente e roupas de “Ancien Régime”. Para imitar joias, compravam pedras falsas, as quais punham nos ornatos. E todo o mundo achava bonito, interessante, sabendo ser pedra falsa. Arquetipizavam aquilo que estavam vendo.

O que faziam as moças e mocinhas, ninguém achava ridículo.

Faziam-no também os bispos. Mitras que deveriam ser de tecidos riquíssimos — porque eram chamadas “mitra preciosa”, “mitra áurea”, como reminiscência dos tempos em que eram preciosas mesmo —, no meu tempo de jovem eram feitas com tecidos comprados na Rua Santa Ifigênia(1), nesses especialistas de objetos de alfaiataria religiosa.

Mais de uma vez, terminada a cerimônia da Páscoa, vi um bispo chegar à porta da catedral, os sinos todos tocando, o portal fazendo moldura para ele; e reluzindo na mitra todas aquelas pedras falsas que poderiam ornar as fantasias de carnaval.

Ninguém achava ridículo. Era uma legítima arquetipização. Quer dizer, é um processo legítimo, sem o qual a boa ordem do pensamento humano é quase incompreensível.

Comigo, esse processo se dava desde que me lembro de mim, já na pré-idade de formação da razão, dos primeiros princípios.

Bons arquétipos e realidade

Também com relação ao mal. Alguém diria que nasci com uma vocação maniqueia furibunda, mas não é verdade. Era o “inimicitias ponam”(2), e outras categorias de espírito que ainda não conhecia, as quais estavam dentro disso. Reputo que eram graças.

Por exemplo, já tive ocasião de falar do Herr Kinker, o dono de pensão medonho, que me pôs uma vez na chuva(3). Ele se me apresentava como uma personificação do mal alemão. Mas eu o via como ele não era, porém certamente de acordo com modelos alemães que o Herr Kinker procurou imitar. E vinha logo a ideia: “Está vendo?! Há uma porção de pessoas como o Herr Kinker. Existe no fundo, algo semelhante a ele, e isto eu detesto!”

Isto se dava arqui-carregadamente na Igreja do Sagrado Coração de Jesus, onde tudo era arquétipo e arquetipizado.

Concebo que um artista faça uma crítica daquilo e encontre defeitos. Mas esta graça de arquetipização não gosta da análise científica e artística, porque nega a arquetipização e desvia a atenção dela.

Devemos tomar cuidado com os bons arquétipos que formamos na alma, pois mesmo quando não correspondem à realidade, são mais profundos que a realidade vista.

O timbre de voz de Nosso Senhor

É importante notar ser esta atitude de alma uma explicação de minha pessoa aos olhos dos outros. Se quiserem entender muitas de minhas atitudes, vejam que estou agindo em função de um arquétipo.

Mas este arquétipo não é como o do indivíduo que estudou na escola de Belas Artes e se põe a desenhar uma fachada excelente, porque conhece os princípios. Ou este arquétipo sai à maneira de um jorro, do fundo da alma, do senso do ser em contato com a realidade, ou não adianta nada. Essas regras são como as regras da lógica: não servem para pensar, mas para formular com clareza o pensamento. Pois, se não se descobriu a verdade antes de usar a regra da lógica, só com a regra não se vai descobrir.

Na Igreja do Coração de Jesus havia algo arquetípico mais ou menos esparso pelo ar, do qual estou certo de que era uma graça. Quer dizer, admito que, a rogos de Nossa Senhora, Deus desejasse que eu fosse propenso a essa operação psicológica, mental, natural, e assim me concedesse graças nesse sentido, para eu conseguir realizar minha vocação.

Por que tenho certeza de que havia na Igreja do Sagrado Coração de Jesus uma graça? Porque, sem saber que era uma graça, pensava mais ou menos o seguinte: “É curioso, mas parece que tudo nesta igreja fala à minha alma! E fala com o timbre de voz que teria Jesus se estivesse na Terra! Esse é o próprio timbre de voz d’Ele!”

Não pensem que eu tinha uma visão, não se trata disso.

Uma igreja bela, mas faltava-lhe algo de fortificação

Graças a Nossa Senhora, também arquetipizava muito os Santos em função das imagens. De maneira que aquela coleção de imagens, ao longo das naves da Igreja do Coração de Jesus, era para mim imponentíssima, de Santos arquetipizados!

Ouvindo o órgão de lá, parecia-me a voz de Deus. Sabia que não era, mas achava ser algo como a voz de Deus.

No fundo da minha alma, isso me sensibilizava até onde era possível sensibilizar alguém. Depois de sentir profundamente aquilo, ficava querendo bem, e agradecendo. Porque percebia algo de muito bom que havia em mim potencialmente, que se movia agradecido e dizia: “Eu vos esperava, aqui estou!” Acho que era a graça do Batismo, a presença de Deus.

Tenho a impressão de que com todas as crianças acontece o mesmo.

Notava, entretanto, uma característica do Coração de Jesus não presente naquela igreja, mas que deveria estar. Sentia-me ali como se estivesse dentro de uma linda capela medieval posta no meio do campo. Ora, na Idade Média não existiam capelas colocadas no meio do campo; precisavam ter em volta muralhas, caso contrário o inimigo as destruiria.

Eu julgava, então, que a Igreja do Coração de Jesus deveria ser naturalmente fortificada. E aquela ausência de força, de “bellum”, da guerra, fazia-se sentir. Com isso, algo de minha alma não estava expresso, deixando-me a ideia de um complemento que faltava.

Contudo, consolava-me a grade da Igreja do Coração de Jesus e aqueles dois corpos de edifício, que davam ideia de um mal a combater e uma estabilidade a afirmar contra a intempérie. Alguma coisinha falava vagamente de uma circunstância adversa a ser tomada em consideração.

Gostava muito da figura do Padre Eterno, um belo mosaico existente em cima do tabernáculo, porque Ele era representado como um ancião batalhador e dominando.

Dona Lucília entendia essa atmosfera, mas não explicitava

Isso que eu sentia, algumas pessoas difusas pela igreja também sentiam mais ou menos. Não todas, mas uns dez por cento.

Dentre os outros, muitos tinham restos de religiosidade conspurcados: utilitários, consuetudinários, feitos um pouco de moda e de outros elementos meramente terrenos. No meu tempo de menino, aquela era a igreja da moda de um bairro bom de São Paulo.

Porém, se deixassem de haver ali dentro as almas que sentiam aquilo que eu estava notando — das quais o exemplo mais próximo, mais querido, mais eloquente era mamãe — os outros não voltariam mais. Era uma espécie de rede, por uma ação de “proche en proche”(4) e de presença, mais ou menos invisível.

Parecia-me também que as pessoas que frequentavam a igreja, e sentiam o que eu discernia, gostavam dessa graça, mas nunca teriam coragem de comentar, pois todo mundo cairia na gargalhada e diria ser uma demência! Portanto, não se devia falar sobre isso. E quem sentia não comentava, mesmo entre os que igualmente percebiam os imponderáveis da Igreja do Coração de Jesus. Mentalmente, formulavam algo do que sentiam, mas não iam além disso.

Acho que mamãe tinha ideia de que era uma graça, o que a levava a rezar muito lá. Todos esses matizes creio que ela os tinha, até riquíssimos, mas não sabia dizer. E nunca disse.

As pessoas tocadas por essa graça, em certo momento, achavam-na monótona

Eu percebia também essa própria graça atrair uma boa porcentagem desses que a sentiam. Contudo, se a graça se mantivesse e eles tivessem que ficar muito tempo em contato com ela, a maior parte achava monótono. Chegavam lá, deliciavam-se, se encantavam, mas depois sentiam tédio. E com um pouco mais, um pouco menos de tempo, sumiam.

Eu ficava perplexo: “Como é esse negócio? Não posso compreender: gostam tanto e fogem? Não aguentam o que admiram?” E pensava: “Dá-se o mesmo com relação a mamãe. Fazem com ela a mesmíssima coisa!”

Cheguei, então, à conclusão: “Algo disso há de transparecer em mim algum dia. Terei a vida que possuem essas coisas. Vou ser muito atraente para uma minoria, mas esta vai se cansar rapidamente de mim…”

Tenho certeza de que, no fundo, o que aparece em mim é isso que hauri no Coração de Jesus, com esse complemento de fortificação muito acentuado. Eu não seria eu mesmo e não me definiria como devo, se não fosse isso. Qualquer reunião feita por mim tem, no fundo, isso. Naturalmente em grau muito menor do que na Igreja do Coração de Jesus.

De um jeito ou de outro, todo o atrativo que eu possa apresentar para a companhia de outras pessoas, está marcado por isso. Portanto, sei que o itinerário forçoso é este: em certo momento cansa.

Tenho certeza de que isso acontece com todas as pessoas que são conformes à graça, sobretudo no nosso século. Porque isso é a proa de navio contra todo o espírito moderno, é a própria definição do espírito anti-moderno.

Os admiradores de Jesus se cansaram d’Ele…

Há uma nota em tudo quanto eu disse, sem a qual isso seria enormemente incompleto.

Na Igreja do Coração de Jesus, e em todas as imagens do Sagrado Coração de Jesus da boa escola, havia uma nota de tristeza. Porque dentro de toda essa harmonia, toda essa beleza, estava encravada a cruz.

Nosso Senhor Se apresentava para nosso olhar como sendo o próprio Homem-Deus, com todos os títulos para ser amado. A isto Ele acrescentou milagres e doutrinas.  Quando se lê uma frase do Evangelho, às vezes se pergunta por que o mundo inteiro não para, e fica comentando aquele pensamento por toda a eternidade! Quer dizer, Ele fez o inimaginável! E vê-se ter despertado admiração. Entretanto, seus admiradores se cansaram d’Ele…

Essa rejeição certamente causava uma dor profunda na humanidade santíssima d’Ele, precisamente por ser imerecida.

Um espírito superficial diria a Nosso Senhor: “Não Vos importeis. Vós nadais dentro de vossa própria perfeição. Por que precisais desses ‘pés-rapados’ que procurais?”

Seria um cálculo mal feito, evidentemente.

Portanto, a vida de Nosso Senhor era tristíssima. E há no fundo do olhar e do Coração d’Ele uma tristeza habitualmente morando. É o por onde aparece o melhor d’Ele.

Aceitar uma vida assim é aceitar de morar dentro de uma tristeza. Ao mesmo tempo nós sermos a casa da tristeza e a tristeza ser a casa de nossa alma; morarmos nós nela e ela em nós. E aceitar isso como “normal”, quer dizer, corriqueiro, inevitável, constante, até o fim.

Devemos procurar eliminar a alegria diante da simples ideia de que depois tem o Céu. Porque isto é um modo “happy-end”(5) de tomar as coisas, que não está na via de Nosso Senhor.

Realmente, depois há o Céu, mas existe a cruz que desfecha na morte, intermediária entre o homem nesta Terra e o Céu.

Este amplexo com a tristeza confere renúncia, abnegação, bondade, perseverança, constância a todas as nossas disposições de alma.

Não sei se torno claro quanto isso é essencial e como não seria cristão se não fosse assim.

Disso, sobretudo, muitas pessoas têm horror. Percebem e fogem! Ficam horrorizados.

A recusa da cruz traz o apagamento da luz

A cruz é como a sabedoria: a sabedoria da cruz vai desde a manhã sentar-se à porta da casa de cada um, esperando como uma mendiga que lhe queira abrir. Ela faz isto com todas as pessoas, de todos os jeitos, de todos os modos, conservando a dignidade como — guardadas as proporções — em grau divino a conservou Nosso Senhor Jesus Cristo.

Portanto, não é uma baixeza indigna, mas uma atitude em outra clave. E isto não é aceito.

O “flash”(6) faz uma operação curiosa: cobre isso de alegria, de maneira que inicialmente a pessoa não percebe a cruz. Em certo momento, suspeita estar ela aparecendo. E um dos pontos do entibiamento e do tédio sucede quando o indivíduo, confusamente, no meio do perfume das flores, começa a sentir o cheiro da cruz e a rejeita.

Se fosse pelo menos a cruz dramática: a pessoa se deita e faz-se crucificar! Mas não. É a cruz de todos os dias, com sua banalidade, sua monotonia, sua luta contra tal tentação concreta, que a pessoa não quer aceitar, mas não quer vencer; tal xodó, tal birra, tal coisa que não quer perdoar, sobretudo.

O indivíduo quer colocar no centro de sua vida uma fonte de alegria. Quando quer isso desista, porque fracassou!

Quando a pessoa recusa a cruz, apaga-se a luz. Ela pode achar a Igreja do Sagrado Coração de Jesus a mais bonita possível, mas fica átona. A alegria desaparece, começa a julgar tudo tedioso. Continua a achar bonita a igreja, mas de um bonito tão apagado que as coisas mais admiráveis que lá existem não despertam comentário.

A biografia de Huysmans(7) que li foi para mim uma revelação e uma delícia para a alma, porque, quando ele se converteu, passou a ver muitíssimas dessas coisas de novo.

Quando vem a conversão, a pessoa começa a perceber que a Liturgia é linda e a re-perceber as belezas da Igreja. Enquanto mero artista, o Huysmans percebia, não tem dúvida; mas isto não tem vida.

Os convites da graça, as recusas e a seriedade diante da vida

Suponho que a graça produza esse processo no espírito de todos, mas a maioria vai, desde logo “apostatando” e tendo, já no começo, um tal desamor, que não conservaram nem remorsos, nem recordação. De onde uma obliteração profunda, dentro da qual algo ficou. A “cathédrale engloutie”(8) é isto. Algo ainda fala à alma, mas as pessoas vivem de soterrar essa graça.

Ao longo da vida, todos os dias, as pessoas recebem vários convites nesse sentido, mas já vão correndo ao primeiro bueiro, para ver onde podem jogar fora o convite. Esta é a realidade.

Mas Nossa Senhora é tão boa que um pavio sempre fica, e essa luz pode reacender.

Isto é propriamente o Reino de Deus e sua justiça que devemos procurar. Os Apóstolos o que quiseram foi isto. Isto borbulha no Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem, sobretudo na “Oração Abrasada”, que é um “geyser” disto! Quando se ouve falar de Carlos Magno, das Cruzadas, isto borbulha!

Ficaram, assim, umas fontes no deserto lançando água para uns homens que, de longe, ainda olham para elas e dizem: “Como são bonitas… Agora me deixe comer tâmaras…” Voltam as costas para a fontes e começam a comer tâmaras.

Ou, o que é pior: “Deixe-me afundar no pecado!” Porque quem recusa esta graça perde as condições para conservar uma castidade perfeita.

Estas considerações produzem certa melancolia, mas que não vão sem alguma alegria.

Tudo isso junto, como se chama? Seriedade.

Encerramos uma conversa séria. Como é melhor ser sério do que torcer!

Meus caros, que Nossa Senhora os ajude!

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 5/10/1985)

Revista Dr Plinio 208 (Julho de 2015)

 

1) Localizada na região central da cidade de São Paulo.

2) Do latim: porei inimizades (Gn 3, 15).

3) Ver Revista Dr. Plinio n. 9, p. 4-5.

4) Do francês: de próximo em próximo, gradativamente.

5) Do inglês: final feliz. Alusão à mentalidade difundida pelos filmes de Hollywood.

6) Graça atual de caráter místico que confere um particular discernimento do sobrenatural. Ver Revista Dr. Plinio n. 55, p. 16-20.

7) Joris-Karl Huysmans, escritor e crítico de arte francês
(* 1848 – † 1907).

8) Do francês: catedral submersa. Referência a uma lenda bretã segundo a qual os sinos de uma catedral submersa no mar faziam ouvir seu bimbalhar, em certas ocasiões, trazendo à tona a memória do magnífico templo e da belíssima cidade onde ele fora erigido.

Rei e centro de todas as coisas

Quem se dedica ao apostolado, ou qualquer outra atividade em prol da Igreja e da civilização cristã, deve compenetrar-se de que Nosso Senhor é o centro de todas as coisas e jamais poderá ser derrotado. Se tivermos sempre em vista essa verdade, compreenderemos como são pequenos os fatos que às vezes nos angustiam e nos fecham o horizonte.

 

Segundo fotografias que vi de desenhos e pinturas nas catacumbas, não há nada que indique terem os católicos daquela época uma ideia clara de como foi a face de Nosso Senhor Jesus Cristo. Seria natural que, considerada a grande importância d’Ele, houvesse alguém de seu tempo — ou cem, duzentos anos depois de sua Morte — que tivesse feito uma representação de Nosso Senhor, pintada ou de qualquer outra forma.

Arquetipização da figura de Nosso Senhor

Entretanto, apesar da carência desses documentos, de repente — não sei bem em que século da História da Igreja —, começam a aparecer imagens com a fisionomia que está no Santo Sudário.

Como foi preenchido esse hiato?

Alguém dirá: “Pela tradição.”

Sem dúvida, mas como é que a tradição se exprimiu? Como se transmite pela tradição a figura de um rosto que não se pintou, não se esculpiu, e nem sequer documentadamente se descreveu?

O Evangelho é uma espécie de autorretrato de Nosso Senhor, não feito por Ele, mas com fatos de sua vida que dão a ideia de como Ele era, entretanto não são suficientes para compor o rosto de Jesus. Depois de composta a face, lendo o Evangelho dizemos: “Não há dúvida, esse é o rosto d’Ele mesmo!” O Evangelho autentica a face, mas não dá os elementos para sua composição.

Vê-se que a graça continuou a fazer nas almas uma arquetipização(1) válida da figura do Redentor, à vista da iconografia muito insuficiente que havia, e essa arquetipização floresceu, de repente, no rosto d’Ele o qual conhecemos e que o Santo Sudário vem documentar.

Isso me parece uma prova criteriológica muito bonita do valor dessas sublimações movidas pela graça.

O Rei da glória é o vencedor

Tomando Nosso Senhor como Ele foi, com toda aquela elevação, bondade, calma, distância, intimidade e tudo o mais, deduz-se que, ou o gênero humano é uma pagodeira sinistra, uma espécie de sarabanda do Inferno prenunciativa da que lá existe, ou tem que haver no centro e no ápice uma figura em torno da qual todos os homens se ordenem.

Quer dizer, há uma espécie de senso profundo do ser que, diante da Revelação, exulta e nos leva a exclamar: “Sem dúvida, esse centro tinha que existir, não pode desaparecer; é Nosso Senhor. Ele tem que vencer, é o Rei da glória e as suas derrotas são aparentes, pois, no fundo delas, Ele é o vencedor, e sempre reaparecerá!”

O senso de que a História deve ter um futuro diferente, o porvir da ordem contrária à Revolução, vem deste senso de que Ele é o centro e não pode ser deslocado deste centro. E, como não pode ser deslocado, a vez d’Ele chegará. Por isso, quando virmos uma pessoa inteiramente fiel a Ele — ainda que seja o último ser humano que se conheça — podemos afirmar com segurança: “Vai vencer!”

A mulher que não tinha nariz

Conheci uma mulher sem nariz, uma beata da Igreja de Santa Ifigênia(2), que todos os dias, em qualquer tempo que fosse, ia lá com o guarda-chuva na mão; não sei por que ela não segurava no cabo, mas em cima, onde se reúnem as varetas. Feia, baixa, e com um lenço sempre limpo e de qualidade ordinária, cobrindo a cavidade do nariz, amarrado de tal modo que não atrapalhava a respiração ­dela. Ela andava, falava, vestia-se normalmente e tinha algum trabalho. Vivia no meio das beatas, porque era assídua em Comunhões na Igreja de Santa Ifigênia.

Humanamente falando, era uma derrotada, mas ela ia para a frente com uma firmeza, um ar de segurança da vitória que destoava de toda a melúria piedosa que a cercava e da qual ela não tinha bem noção. Ela possuía um triunfo, e andava naquelas ruas já neopagãs da São Paulinho, com ar de vencedora, pois participava dessa noção de vitória de que falei há pouco. E, por exemplo, a mim, essa mulher muitas vezes fez bem porque, olhando para ela, eu pensava: “Quem suscita almas assim, está vivo, não pode morrer e isto vai para a frente!”

Aquela pobre senhora era bem mais velha do que eu, e certamente terá morrido. Eu gostaria que no Céu, onde ela se encontra, essas palavras de saudades, de homenagem chegassem.

Ela me olhava muito, não sei por quê; eu também dirigia meus olhos a ela, mas os formalismos justos daquele tempo levavam a que, sendo ela uma pessoa de uma classe muito inferior à minha e de outro sexo, não nos abordássemos. É muito legítimo. Eu teria muita alegria de saber que fiz algum bem à alma dela.

Fonte perene que nunca deixa de jorrar a água viva

Uma vez que tivemos a graça e a alegria de poder expor esse pensamento sobre o Sagrado Coração de Jesus, creio que se não fizermos remontar todas as nossas doutrinas a isso, não compreendemos em toda a sua profundidade, exatidão, força cogente, aquilo que dizemos. Quer dizer, olhando para Ele, seriamente, compreendemos que Nosso Senhor é o centro e tem que vencer.

É, por exemplo, o pensamento que animava a Nossa Senhora na hora do “consummatum est”(3), em que Ela O teve sobre o colo, enquanto punham aromas no Corpo divino, e tudo o mais. E também A confortava durante o tempo em que Ele esteve sepultado.

Porque os Apóstolos, Santa Maria Madalena e os discípulos de Emaús tinham isso de um modo incompleto, não O reconheceram quando Jesus ressurrecto apareceu, a não ser em certo momento. Não possuíam a noção de que Ele não podia ser derrotado. E nisto estava o ponto fraco deles.

Ora, quando se conhece uma obra que resiste à Revolução e conserva, contra toda a ordem de coisas, um certo viço, percebe-se que ali a Fonte perene nunca deixa de jorrar a água viva, e que isso ninguém vence.

Se tivéssemos isto em vista, possuiríamos, por exemplo, um outro ânimo em tocar o apostolado, porque compreenderíamos como são pequenas diante dessa verdade as coisas que às vezes nos angustiam e nos fecham o horizonte.

Às vezes, vem falar comigo alguém com muito mais empenho em resolver o casinho de seu apostolado do que em tratar deste tema. É porque a pessoa perdeu de vista que a água viva é outra, o centro é outro, e todas essas coisinhas devem ser tratadas, pois têm o seu papel na vida, mas de nenhum modo podem lotar a nossa atenção.

O chinês que chega à Terra Santa à procura de um Ser perfeito

A respeito de Nosso Senhor, pode-se imaginar uma pessoa do tempo d’Ele que O conheceu em sua vida terrena e, por assim dizer, tivesse explodido de adoração a Jesus, tocada pela sua presença.

Mas seria possível dar-se um outro fato de pessoas que, levadas pela inocência, pela retidão, pelo senso do ser, fizessem um prognóstico mudo, não explicitado, de que algo como Ele deveria haver. E que se pusessem a procurá-Lo, sem saber que era a Nosso Senhor que estavam procurando. Então, por exemplo, poder-se-ia imaginar o seguinte caso irreal, mas daria um lindo conto.

Um chinês que tivesse saído da China, em linha reta, rumo ao Mediterrâneo, sem ter noção desse mar, e atravessando os mais variados povos, levado pela ideia confusa de que, à força de ver gente, ele encontraria algo que não sabia o que era, mas lhe preencheria a alma.

Chegando à Terra Santa, teria ouvido narrar os acontecimentos passados com Nosso Senhor, enquanto seu Corpo sagrado estivesse sepultado. E o chinês, numa explosão de Fé, houvesse dito: “Esse Homem não pode ficar na sepultura, Ele tem que aparecer!” E tivesse cantado o “Hosanna”, no próprio momento em que Nossa Senhora estava na soledade.

Essa alma teria feito esse outro caminho para encontrar a Nosso Senhor: levada por um misterioso sentimento de que Ele era o Rei e o centro de todas as coisas, sem saber explicitar, procuraria a Ele. E, encontrando-O morto, veria que o caso não poderia se liquidar assim.

Não é verdade que essa alma mereceria ter assistido à Ressurreição?

Movimento metafísico fortíssimo

Em pequeno, tive a felicidade indizível de ser batizado, conhecer Nosso Senhor, de ser tocado pela graça da devoção a Ele, especialmente na atitude de mostrar o seu Coração. Foi como um encontro pessoal que me fez conhecer coisas as quais eu não conheceria se não tivesse encontrado a Ele. Isso é verdade.

Mas também é verdade que Nossa Senhora obteve que fosse posto em minha alma, pela inocência, um movimento metafísico fortíssimo para buscar o centro de todas as coisas, e que quando encontrou a Ele, de algum modo já estava aberto para ver isso n’Ele.

Não sei como agradecer à Santíssima Virgem de ter pedido e obtido isso para mim! Mas vejo bem que se esta devoção a Ele vingou em mim, de um modo tão profundo e tão pouco vulgar para um menino daquela idade, foi porque já havia em minha alma um movimento para um maravilhoso, um absoluto, para uma coisa que a inocência me dava. E houve um encontro.

Seria, portanto, um pouco o homem que encontrou Nosso Senhor, e um pouco o chinês levado por aquele movimento metafísico. E, se não me engano a esse respeito, uma pessoa que queira me conhecer, deve notar esses dois movimentos na minha alma.

E daí ela mesma pode, através do conhecer-me, ser estimulada para uma e outra coisa. Não direta e exclusivamente para ver isso n’Ele, mas perceber a Contra-Revolução. No ver a Contra-Revolução, contemplar a Ele; e no ver a Ele, contemplar a vitória da Contra-Revolução e concluir: “Isso não pode ser derrotado!”

Contaram-me que no maremoto o mar recua, recua, e depois a fúria com que ele volta e a força de invasão é proporcionada ao poder de retração.

Podemos comparar isso à ausência de Deus no panorama moderno. Também Nossa Senhora faz assim com seus seguidores perseguidos, chamados à bem-aventurança de sofrer perseguição por amor à justiça: Ela recua, recua… Tomem cuidado, porque Ela deixa aqueles a seco, como um navio parado que ficou fazendo o papel ridículo de fantasma no meio de uma terra árida; mas quando o mar voltar, deve chegar onde nunca atingiria numa época comum!

Consideremos que Nosso Senhor disse o “Eli, Eli, lamá sabactâni”(4) depois de ter previsto a glorificação d’Ele ao Bom Ladrão: “Hoje estarás comigo no Paraíso.” 5 Portanto, no meio daquela dor, Ele sabia que iria para a glória do Paraíso, e levaria São Dimas.

Ele foi, como Rei do Céu, abrindo as portas, absolvendo, perdoando o Bom Ladrão. Assim, a primeira canonização que houve na Igreja foi do alto da Cruz, feita por Nosso Senhor diretamente. Depois veio a Ressurreição, e todo o resto. 

(Extraído de conferência de 14/12/1985)

 

 

1) Termo cunhado por Dr. Plinio para significar a procura da perfeição em todas as coisas.

2) Localizada no bairro de mesmo nome, na região central de São Paulo.

3) Do latim: “Está consumado” (Jo 19, 30).

4) Mt 27, 46.

5) Lc 23, 43.