Um imenso turíbulo

A Grande “Chartreuse” causa admiração pela pulcritude de seus edifícios. Entretanto, mais belo é imaginar os varões que  ali levavam uma vida de completo isolamento,  elevando continuamente aos Céus suas preces e sacrifícios.

 

Vamos considerar alguns aspectos da Grande Chartreuse(1).

Em português isso se diz “cartuxa”, termo incomparavelmente menos bonito do que “chartreuse e chartreux”, em francês, se tomarmos em consideração como esses vocábulos são escritos. As palavras, em francês, são especialmente bonitas pelas letras inúteis que contêm. Por exemplo, o vocábulo beau, que significa belo, é bonito porque se escreve “b-e-a-u”. Se for escrito “b-ô”, torna-se um termo para uma tribo errante no meio da África.

Eu ainda sou do tempo em que se escrevia “cysne”. O “i” é para o mundo dos patos e o “y” para o mundo dos cisnes. O “y” é o cisne do alfabeto português; por isso, seria natural que “cysne” se escrevesse com “y”. Cristal se escrevia com “c-h-r”; fica muito mais “cristalino” com esse “h” do que sem ele.

“Chartreux” é bonito e a palavra canta!

Essa é a Grande Chartreuse por ser a primeira e a maior dentre várias outras chartreuses existentes.

A neve: arco-íris em estado de síntese

Vemos nessa fotografia como a neve cobre o edifício tão amplamente que essas chaminezinhas estão com o seu “chapéu” de neve. Compreende-se perfeitamente a razão de ser desses telhados e dessas torres em ponta. Nota-se que as pontas são tão agudas para impedir a neve de se fixar; pois, se a neve se acumulasse em maiores quantidades, cairia o teto.

Apesar de a inclinação do telhado da abadia não ser tão acentuada como a da igreja, a quantidade de neve que se acumula é pequena, razão pela qual há condições de resistência dele.

Os morros estão todos circundados de neve e os próprios pinheiros, ao longo da encosta da montanha, encontram-se cobertos de neve, a qual é muito bonita porque dá a impressão de que todo o ambiente revestido por ela está tirado das misérias da terra, e posto numa espécie de atmosfera extratemporal.

A brancura total e completa fala da pureza, não somente da castidade preceituada pelo sexto e nono Mandamentos, mas de uma solidez de alma, uma temperança e uma força que nos dão a impressão da tranquilidade que só a virtude confere. A meu ver essa é a expressão moral da neve que se liga à beleza da alvura.

Quando contemplamos o branco da neve, podemos compreender o valor de uma síntese porque ele é a síntese de todas as cores. No branco dessa neve dormem todas as cores do arco-íris. Portanto, são arco-íris em estado de síntese que estão aí. Isso talvez explique a beleza da neve.

Mais do que um prédio, trata-se de uma cidadezinha. É um imenso “Buissonnets”(2) dos cartuxos. Há uma grande praça central para a qual dão uma série de construções, cuja forma lembra vagamente um pente.

A igreja destaca-se de todo o resto pela sua forma. Nota-se ainda um prédio de construção mais recente, que constitui também um corpo separado.

Mais adiante há um edifício, provavelmente uma outra capela, com um torreãozinho muito gracioso, e as construções vão se perdendo por aí afora, indicando o método, a ordem, a concatenação, o entrelaçamento da vida de todos os monges.

Essas montanhas não são habitadas, mas há um imponderável qualquer pelo qual se percebe não existir também do outro lado residência alguma. Elas fazem parte de um maciço montanhoso impróprio para a construção de cidades. O verde da vegetação e a neve marcam o espírito do edifício e da instituição que nele vive.

Isolamento, oração e penitência

Qual é essa instituição? Por que esse isolamento? Por que todos esses edifícios? O que significa a vida de um homem nesse lugar?

A Ordem dos “Chartreux”, fundada por São Bruno, na Idade Média, tinha por objetivo separar do convívio humano aqueles que tinham recebido de Deus uma altíssima vocação: estar constantemente pensando em temas relacionados com a doutrina e o espírito da Igreja, com a Filosofia, a Teologia, os documentos do Magistério, em suma, com a Doutrina Católica.

De maneira que nenhuma reflexão passeasse pela mente de um cartuxo, nenhum comentário lhe atravessasse a alma, que não fosse fundamentalmente relacionado com a Doutrina Católica. Naturalmente, uma larga parte do tempo era reservada para a prece, os ofícios rezados na capela da instituição de dia e de noite, em horas difíceis, interrompendo várias vezes o sono; jejum fortíssimo, trabalhos manuais, flagelação, leitura, sobretudo de assuntos teológicos e de vida espiritual.

Vida isolada de tal maneira que os cartuxos moram verdadeiramente como eremitas, em pequenas casas separadas umas das outras, e só se encontram para tomar alimento no refeitório do convento e para rezar na capela. O resto do tempo eles passam sós, e para fazer exercícios físicos racham madeira.

De vez em quando, realizam passeios na propriedade deles, em geral muito grande, com terras ermas, em fila indiana, de maneira que um não vê a fisionomia nem conversa com o outro. Caminham todos quietos, refletindo, pensando. Sobem, descem morro, com um itinerário indicado pelo prior; depois voltam todos para suas casas e vão se entregar cada um à sua vida, completamente só. Cada um deles é um verdadeiro solitário, um eremita no sentido literal da palavra.

A mais completa das renúncias que se pode praticar

Por que isso? A razão é dupla. Em primeiro lugar, porque as almas não são chamadas a pensar em todas as coisas, a não ser debaixo do ângulo da eternidade, quer dizer, relacionadas com a Doutrina Católica.

A algumas pessoas, por intercessão de Nossa Senhora, Deus concede a graça de serem assim no meio da vida quotidiana. A outras Ele dá essa graça, e até com opulência extraordinária, desde que elas se isolem; então, chama-as para esses lugares e, ali se isolando, elas pensam, pensam, pensam, e acabam construindo castelos interiores magníficos, mentalidades onde nada passa a não ser de acordo com o espírito da Igreja Católica.

Mas uma coisa muito bonita é que, em atenção ao fato de pertencermos ao Corpo Místico de Nosso Senhor Jesus Cristo, quer dizer, à Santa Igreja Católica Apostólica Romana, há uma reversão entre nós por onde os méritos e sacrifícios de uns podem reverter em méritos e perdão para outros.

Então, os cartuxos vão para esses lugares e praticam a mais completa das renúncias que se possa praticar, para levar uma vida de sofrimento. Aí eles sentem frio, passam fome durante horas e horas, ao longo dos dias, semanas, meses, anos e decênios de solidão, sem sequer qualquer pequena distração do afeto humano, mas quietos até o momento de conversarem com os Anjos e com Deus.

Assim é a vida deles. Oferecem isso para a salvação das almas, a respeito das quais Nossa Senhora tem planos especiais para a glória d’Ela e para a expansão da Santa Igreja; por todos aqueles que são necessitados, para que sejam fiéis e perseverem.

É possível que estejamos juntos neste momento porque algumas almas dessas sofreram e padeceram uma vida inteira de isolamento. Nós não sabemos, às vezes, a que heróis, ou a que santos desconhecidos devemos a nossa perseverança.

Quem não teve horas de moleza em que duvidou se realmente perseveraria? Horas em que o pé resvalou sobre o abismo… Entretanto, pelo favor de Maria Santíssima, estão aqui. Quem sabe se algum desses varões ofereceu a vida por uma alma que não conhecia, à qual Nossa Senhora, do alto do Céu, destinou: “O sofrimento de Dom Fulano é para meu filho Sicrano.” E eles só se encontrarão no Paraíso. Esse é o sentido penitencial magnífico dessas almas.

Um turíbulo de onde se elevam, continuamente, penitência e oração

Alguém poderia perguntar: Não haverá um atentado do homem contra sua própria natureza, isolando-se assim? Eles não ficarão neurastênicos ou convulsionados na vida que levam? Não morrerão prematuramente? ­Isso não será um excesso de austeridade?

São Pio X pensou em reformar a Regra deles, tomando em consideração que os homens de seu tempo não tinham mais a força dos homens de outrora. Por causa disso, a Regra, feita na Idade Média, podia não se adaptar a eles.

Os cartuxos, então, mandaram uma delegação a São Pio X, de várias chartreuses do mundo, para pedir a não mitigação da Regra. Pelo que me contaram, eram dez monges, todos com mais de 90 anos de idade, fortes, de longas barbas brancas. Prosternaram-se diante do Papa e rogaram-lhe que não alterasse a Regra, pois eles eram a prova de que os cartuxos a aguentariam.

Mas São Pio X, em sua sabedoria de santo, e tomando em consideração a debilitação do gênero humano, entendeu que as gerações posteriores que entrassem na Ordem dos cartuxos — aqueles eram da geração dos velhos, ainda suportavam — não aguentariam mais. Então fez algumas alterações, muito medidas e pequenas, na Regra dos cartuxos.

Compreendemos, então, o “pulchrum” verdadeiro desses edifícios. Imaginemo-los habitados por homens perpetuamente silenciosos, pensando nas coisas de Deus, postos na oração e no sacrifício, em favor de almas que eles ignoram. Pensemos nos anciãos de 90 anos, entrando aos 20, e passando 70 anos num ambiente desses. O que seria, no rigor do inverno, o uivar do vento nessas montanhas e que, de repente, se enfurna por uma janela dessas, e vem trazer o frio para dentro desses edifícios, muito mediocremente aquecidos, atingindo homens apenas alimentados do indispensável?

Consideremos que isso é um imenso turíbulo de onde sobem continuamente ao Céu os perfumes da oração e da penitência. Compreendamos que há qualquer coisa de tranquilo, de sereno, de crucificado e varonil aí, que realmente incute uma enorme veneração, um respeito sem fim.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 15/1/1977)

 

1) Mosteiro situado na comuna francesa de Saint-Pierre-de-Chartreuse, a norte de Grenoble, na Isère, França.

2) Casa situada em Lisieux, França, onde residiu Santa Teresinha.

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