Teoria do Amor à Cruz

O mundano, conforme seu feitio e o ambiente em que foi formado, admira quem é cheio de honras, dinheiro e conforto. O verdadeiro católico, dotado de sabedoria, desapegado de seus bens e que os utiliza por amor a Deus, possui uma dignidade, um decoro, uma distinção, uma compostura, que são o brilho da Cruz de Cristo.

 

São Luís Maria Grignion de Montfort(1) apresenta o seguinte elemento para praticarmos perfeitamente o amor à Cruz:

“Renuncie a si mesmo!”

Longe dos Amigos da Cruz os orgulhosos e os sensuais!

Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz! “Abneget semetipsum”, renuncie a si mesmo! Longe da Companhia dos Amigos da Cruz os sofredores orgulhosos, os sábios do século, os grandes gênios e os espíritos fortes, que são teimosos e convencidos de suas luzes e talentos! Longe daqui os grandes tagarelas, que fazem muito ruído e colhem apenas o fruto da vaidade! Longe daqui os devotos orgulhosos e que levam para toda parte o “quanto a mim” do orgulhoso Lúcifer, “non sum sicut ceteri” (Lc 18, 2), que não podem suportar que os censurem sem desculpar-se, que os ataquem sem defender-se, que os rebaixem sem exaltar-se!

Tende bem cuidado para não admitir em vossa companhia os delicados e sensuais, que temem a menor picadela, que se queixam da mínima dor, que nunca provaram a crina, o cilício, a disciplina e, entre as suas devoções em moda, misturam a mais disfarçada e refinada delicadeza e falta de mortificação.

Mudança completa de mentalidade

Há aqui umas pequenas observações a fazer. Em primeiro lugar, essa ideia claríssima, de Nosso Senhor:

“Se, pois, alguém quiser vir após Mim, assim aniquilado e crucificado, que só se glorifique, como Eu, na pobreza, nas humilhações e nas dores de minha Cruz!”

Essas são palavras já tão conhecidas e referidas, com tanta superficialidade e banalidade de espírito, por pregadores de segunda classe, que elas tomam aspecto de chavões. Ora, Nosso Senhor não poderia ter dito chavões. E não é possível que o Espírito Santo tenha inspirado chavões. De maneira que, chavões não podem ser. Existe uma pátina de trivialidade por cima dessas coisas, que não se pode confundir com a substância delas, porque do contrário seria admitir que Nosso Senhor diria banalidades, o que é o absurdo dos absurdos.

Como nós podemos atender esse conselho de Nosso Senhor?  Tal conselho de algum modo toca o preceito e até o âmago do preceito: “Se alguém quiser vir após Mim, renuncie a si mesmo…”; e deve ser aniquilado e crucificado, de tal maneira que só se glorifique na pobreza, nas humilhações e nas dores.

Em primeiro lugar, isso supõe uma espécie de metanoia, uma mudança completa de mentalidade. Porque o homem, pelas forças, pelas tendências de sua natureza, admira o contrário dessas coisas. Ele tem admiração pelo sucesso, pela riqueza, pelas glórias, pelo bem-estar. E quando ele vê uma pessoa nos píncaros da fortuna e das honrarias, gozando do sumo bem-estar, é levado a querer admirá-la. Pelo contrário, quando um indivíduo não tem isto, ele tende a não admirá-lo.

Honras, dinheiro e conforto

É por causa disso que os amigos do mundo procuram cercar de glória, de dinheiro, de bem-estar os homens que eles querem prestigiar; e buscam evitar o acesso a essas coisas às pessoas cujo prestígio desejam evitar. Porque eles sabem que uma grande glória, uma grande fortuna, a ostentação de um bem-estar mais nítido, são tribunas do alto das quais um homem afirma a sua superioridade perante os outros, e se transforma num doutor deles; o que ele diz, os outros acreditam facilmente, ele se torna um símbolo e um guia para os outros. Quer dizer, ele representa a própria plenitude da humanidade. Doutor, símbolo e guia são as três formas pelas quais um homem pode arrastar a opinião pública atrás de si.

Alguém me dirá: “Mas Dr. Plinio, isso é igualmente sabido”.

Eu afirmo: “É verdade, porém não é tão lembrado”. Além disso, é preciso dizer o seguinte: devo retificar em mim esse modo de pensar, e aí está o aspecto metanoia. Quer dizer, preciso agir internamente em mim mesmo, pedir a Nossa Senhora que me dê a graça de ser de tal maneira, que essas coisas não contribuam para que eu tome alguém como meu mestre ou doutor, meu símbolo e meu guia. Mas que eu seja capaz de compreender que isso não são credenciais para ninguém, debaixo de nenhum ponto de vista, e devo tomar outros critérios para julgar os homens.

Por exemplo, o mundanismo não é senão isso. Toda forma de mundanismo acaba tendo esses sintomas. A pessoa que é mundana, conforme seu feitio e o ambiente em que foi formada, admira o homem cheio de honras, ou de dinheiro, ou de conforto.

Erva daninha em nosso espírito

Eu lhes garanto o seguinte: se fizermos um exame de consciência cuidadoso, corremos o risco — não digo uma certeza, mas um risco sério — de encontrar resquícios disso dentro de nós. Quer dizer, há pessoas que admiramos e exercem império, se não sobre a nossa razão, pelo menos sobre as nossas vivências, porque elas têm algum desses três títulos. E isso de tal maneira nos fascina, que não somos capazes de abalá-lo, de derrubá-lo. Mais ainda, quando desejamos nos credenciar à consideração dos outros, em vez de procurarmos brilhar pelo esplendor da Cruz, intentamos dar-lhes ideia, ou de que somos ricos, ou cercados de muitas honras, ou de que temos um bem-estar esplêndido.

De maneira que há uma verdadeira necessidade de meditarmos a respeito disso, para evitar o desenvolvimento de uma erva má, que a todo o momento está renascendo no espírito de todos nós, ou de quase todos nós; corta-se e renasce, corta-se e renasce.

Por exemplo, conversas mundanas, tratando sobre pessoas que têm qualquer evidência na classe à qual pertencemos. No fundo, tais conversas são sempre seguidas de um preito de admiração à pessoa de quem se fala, por causa desses títulos. Daí vem o efeito debilitante do mundanismo sobre nós. Porque, admirando essa gente, imediatamente em nosso espírito forma-se uma posição falsa a respeito de nós mesmos. Começamos a nos sentir pouca coisa, inibidos, a duvidar do alcance dos grandes lances que nós jogamos. Por quê? Porque não temos dinheiro, honras, em quantidade suficiente para deslumbrar os outros. Possuímos o suficiente para aparecer com dignidade, com decoro, se quiserem, mas para deslumbrar não. Temos o nosso bem-estar nessas proporções. E muitas formas de insegurança em nós resultam da pujança dessa erva daninha no nosso espírito.

Dignidade, desapego e amor de Deus

Se os que estão neste auditório dessem orientação espiritual, compreenderiam melhor o mal que pode fazer a uma alma, numa hora errada, a evocação de um mundano. Aquilo entra como uma picada de uma mosca venenosa e pode estragar um dia, exatamente por causa do mundanismo.

Alguém poderia dizer: “Dr. Plinio, o senhor está preconizando que nós não procuremos nos vestir bem, ter um decoro, uma compostura! E que sejamos uns trapos, ao contrário do que o senhor toda a vida ensinou! Porque se é para ostentar só a Cruz de Jesus Cristo, não se pode fazer brilhar as outras coisas que a pessoa tem”.

O princípio se transmuda da seguinte maneira: como faço brilhar a Cruz de Cristo em mim?

Há uma expressão fisionômica do verdadeiro católico que lhe dá compostura, dignidade e beleza. É um quê pessoal indefinido, o qual resulta da intimidade ou da compenetração da alma com os mais altos princípios da doutrina católica. As expressões mais elevadas do pensamento se tornam para ela como que naturais. A posse da virtude da sabedoria, incluindo em si todas as outras virtudes adequadas, adaptadas ao próprio temperamento; com aquele senso da dignidade sobrenatural do que a pessoa é de fato; com o desapego das coisas no que diz respeito à vaidade, e com aquele puro amor, desejando que essas coisas brilhem, porque são dons de Deus, e para que agradem ao Criador, mas desinteressado em que façam pôr em relevo a miserável pessoinha de cada um de nós; quando isso entra numa alma dá-lhe uma dignidade, uma honestidade, um decoro, uma distinção, uma compostura que é o brilho da Cruz de Cristo.

A Cruz de Cristo é o conjunto de sofrimentos necessários para adquirir a sabedoria. É o conjunto de renúncias, de asceses, de aplicações contínuas e, portanto, muitas vezes esses sofrimentos são sentidos nos pontos fundamentais, com os devidos equilíbrios, contrafortes, as devidas hierarquias; a alma pena para ter amor à Cruz de Cristo. E o esplendor da Cruz de Cristo é uma certa nota de desapego, que vem junto com todos esses dons, e é condição para que esses dons se tornem suscetíveis de serem amados por outros.

Quando uma pessoa tem uma superioridade qualquer, é difícil fazer com que os outros aceitem a própria inferioridade. Mas o modo pelo qual isso ainda é possível, com o auxílio da graça, consiste em fazer com que os outros notem o desapego. Mas se notam uma satisfação vibrante, apegada àqueles dons, e o olhar oblíquo para ver se outros estão admirando ou não, e uma efervescência se não for admirado, os outros notam o apego. Apego gera apego, e nada torna um inferior tão apegado quanto o apego do superior.

Prestígio verdadeiro e sacrossanto

Então, a posse de todas as qualidades de uma determinada alma — que a graça ou a natureza lhe concedeu —, consideradas pelo aspecto sapiencial, nas proporções sapienciais, com renúncia a qualquer coisa contrária e sendo a posse desapegada, isto dá à alma algo que é fator de prestígio verdadeiro e sacrossanto, incomparavelmente maior do que o prestígio de ter automóvel ou qualquer outra coisa.

Esse autêntico prestígio vale mais do que o da Ciência. Há um mundanismo dos homens livrescos e outro dos fúteis. E, no fundo, um é tão fútil quanto o outro; apenas o segundo é um mundanismo mais deslumbrado e ensebado.

Há uma espécie de honestidade, de dignidade, de grandeza de alma, em comparação com o qual tudo mais é resto.

Senso aristocrático e sabedoria

Alguém me dirá: “Dr. Plinio, o senhor parece fazer uma exclusiva glorificação da virtude. A glória do homem é a virtude e nada mais. Ora, isso está em contradição com o hábito que o senhor tem de realçar muito os valores aristocráticos”.

Não é verdade. O que é aristocracia? O senso aristocrático é o aspecto da sabedoria pelo qual o homem sábio nota o que é mais excelente e o que é menos excelente. E dá às coisas com que ele trata um valor que está de acordo com as hierarquias delas. E, quanto a si mesmo, se mostra compenetrado do valor que lhe toca nessas hierarquias, tudo por amor de Deus. De maneira que nada pode produzir um senso aristocrático tão “raffiné”, tão requintado, quanto a verdadeira sabedoria.

O espírito hierárquico não é senão um amor sapiencial à desigualdade, que leva o homem a ter um amor próprio — não de quem está pensando em si mesmo —, mas um amor adequado ao seu próprio grau, tanto quanto ao grau dos outros. E a respeitar cada coisa, não porque é sua, mas por amor de Deus.

Vê-se em muitas pessoas que têm, por exemplo, qualquer grau aristocrático, se entra o amor de Deus ou o amor de si mesmo pelo meio, e a vivacidade com que se interessam pela instituição nobiliárquica, quando não diz respeito a elas.

Então o amor à Cruz não é em nenhuma hipótese o “débraillé”, o desarranjado, o esmolambado, nem o sentimental. Mas é qualquer coisa que prepondera sobre isto.

Segurança e insegurança

Quanto às seguranças e inseguranças, isso dá no seguinte: quem tem esse espírito condenado por São Luís Grignion de Montfort, ou que pelo menos possui “vegetações” subconscientes desse espírito, no conflito ou no contraste entre as duas formas de esplendor — a da Cruz e a do mundo —, chega a sentir-se inseguro. Quem ama verdadeiramente essa hierarquia de valores compreende a força dela e que essa insegurança não tem razão de ser. Pode-se ir para a frente, e aguentar o confronto com toda a firmeza, porque em si a superioridade da Cruz é simplesmente incomparável.

Se nós tivéssemos sempre a compenetração disso, como a nossa vida se tornaria mais fácil! E como todas as nossas atividades se tornariam mais compreensíveis! Por exemplo, um dos segredos de nosso apostolado, do nosso modo de nos apresentarmos em público, consiste em realçar isso. Aqui está a nossa grandeza.

Pôr em ordem a consciência

Alguém perguntaria: “Mas então o senhor considera que o dinheiro, o traje e outras coisas são inúteis para a apresentação?”

Eu não disse que essas coisas são inúteis. Afirmo que elas são de uma utilidade real, mas secundária, para serem assumidas por essa superioridade de espírito e representá-la. Elas existem para sublinhar o prestígio da virtude junto às pessoas com menos profundidade de vistas. Elas representam, em relação ao esplendor da Cruz, o papel do pedal do piano em relação à nota musical, aumentando sua sonoridade. E, como a força do mundo está continuamente procurando acalcar o pedal que diminui a sonoridade, é normal que se acalque o pedal oposto. Mas não é indispensável e nem o principal.

Que vantagem há em explicar isso? Os que se encontram nesta sala não apreenderam nada de novo pelo que eu disse. Mas se lembraram de alguns princípios úteis, tiveram ocasião de se embevecer e de amar mais uma vez a doutrina católica diante de uma reexposição de tudo quanto ela tem de bonito, e sobretudo puderam pôr em ordem a sua consciência, em face a alguns desses chavões, que sempre constituem umas pedrinhas nos sapatos da pessoa.

Aí está uma pequena teoria do amor à Cruz, num comentário muito livre desse texto de São Luís Maria Grignion de Montfort.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência  de 29/7/1967)

 

1) Carta-Circular aos Amigos da Cruz, n. 17.

 

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