São João Fisher Vigilância e serenidade diante da morte

Inabalável na Fé e na defesa da Verdade, São João Fisher, Arcebispo de Rochester, chegou ao seu último momento na prisão com placidez e esperança na bondade divina. Porém, antes de receber o golpe do verdugo, não confiou nas próprias forças e rogou as orações dos que presenciavam sua morte, para não fraquejar e ceder no derradeiro instante. Dr. Plinio nos apresenta e propõe esse admirável modelo de humildade e vigilância.

 

No  dia 22 de junho a Igreja celebra a memória de São João Fisher, juntamente com a de São Tomás Morus, ambos martirizados na Inglaterra por se recusarem a aderir à revolta de Henrique VIII contra o Papado.

“Deixai-me dormir mais uma hora…”

São João Fisher tinha sido capelão da mãe de Henrique VII e chanceler da universidade de Cambridge, antes de ser nomeado Bispo de Rochester. Opôs‑se ao divórcio de Henrique VIII e Catarina de Aragão, bem como à constituição da igreja anglicana. Tendo negado a prestar o juramento exigido pelo rei aos bispos ingleses, foi detido e encarcerado na Torre de Londres. Durante sua reclusão, em maio de 1535, foi feito Cardeal pelo Sumo Pontífice Paulo III.

São João Fischer foi condenado a morrer por torturas, mas a pena lhe foi comutada para decapitação, devido ao muito debilitado estado de saúde em que se encontrava. Assim, nas primeiras horas do dia  22 de junho, o oficial da Torre encontrou‑se com o prisioneiro na cela, recordou-lhe que era idoso e não poderia suportar o regime do cárcere por longo tempo. Em seguida, declarou-lhe ser vontade do rei que a execução tivesse lugar naquela mesma manhã.

— Está bem — respondeu o santo —, se é essa a mensagem que me trazeis, não constituiu para mim novidade. Espero‑a todos os dias. Que horas são?

— Cerca de cinco.

— Para que horas foi marcada a minha partida deste mundo?

— Às dez.

— Então, agradeço‑vos que me deixeis dormir uma hora ou duas mais, pois não dormi muito essa noite, não por medo, mas por causa de minhas doenças e grande fraqueza.

Extremo cuidado com a saúde, a caminho do cadafalso

Ao voltar às nove horas, o oficial encontrou Fischer de pé e vestido. O santo Bispo tomou o novo Testamento e com grande consolação leu essas palavras de São João: Ora, a vida eterna é essa: Que te conheçam a ti como um só Deus verdadeiro e a Jesus Cristo, a quem enviaste. Eu te glorifiquei sobre a Terra, acabei a obra que me deste para fazer; e agora, Pai, glorifica‑me junto de ti mesmo com aquela glória que tínheis em si antes que houvesse o mundo. Depois, pediu que lhe dessem seu manto forrado. Ao que lhe interrogou o oficial:

— Mas, meu senhor, por que haveis de ter um tal cuidado com vossa saúde, se vosso tempo está contado, e pouco mais tendes que uma hora de vida?

— Peço meu manto para me conservar aquecido até o momento da execução. Pois ainda que não me falte coragem quanto a morrer santamente, não quero, entretanto, comprometer minha saúde nem um minuto sequer.

Caminhou rumo ao cadafalso endireitando seu corpo tão magro e descarnado que parecia que a morte tinha tomado a forma de um homem. Sobre o patíbulo, com voz inteligível e clara pediu aos que assistiam a execução que rezassem por ele:

— Até agora nunca tive medo da morte; contudo, sou carne. E São Pedro, receando‑a, negou o Senhor três vezes. Ajudai‑me, pois, a que no instante preciso em que eu receba o golpe mortal, não ceda por fraqueza em nenhum ponto da Religião Católica.

Já no lugar do suplício lhe ofereceram o perdão por várias vezes, se quisesse dizer o que dele esperavam. Mas foi inabalável. Após o suplício, seu corpo ficou exposto, desnudo, durante todo o dia. Sua cabeça, espetada numa lança, foi posta na ponte de Londres. Quinze dias depois, como ainda parecesse viva e o povo começasse a acreditar num milagre, foi lançada ao Tâmisa.

Castigo que todo homem teme

Vemos aqui as reações de alma de um grande prelado às vésperas de seu martírio, o qual não oculta seu receios diante da morte.

Creio que, sem uma assistência da graça, ninguém pode dizer que não teme a morte, pois esta, de si, significa um castigo de Deus infligido aos homens por causa do pecado original. Ela é, portanto, de natureza a incutir medo. Não se pode saber que espécie de sofrimento a separação definitiva entre a alma e o corpo traz para quem morre, porém nos é dado conjeturar que se trata de uma dor profunda, mais ou menos inimaginável. Pois se a menor torção do menor osso do corpo humano pode ser penosa, que dizer dessa dilaceração pela qual a alma vai diminuindo sua influência sobre a carne até abandoná-la completamente?

Portanto, é normal que uma pessoa, ao considerar de frente essa realidade, tenha medo no supremo momento de enfrentá-la.

Se fosse só isso, ainda seria pouco. Na verdade, qualquer pessoa judiciosa que tenha presenciado a situação de um agonizante, sentiu medo da morte por uma razão mais profunda.

Lembro-me, por exemplo, de observar meu pai durante a agonia dele, e de fazer a seguinte reflexão: “Está colocado, a bem dizer, entre a eternidade e a Terra, e já perdeu completamente a consciência de tudo. Os fatos exteriores não lhe tocam. Porém, no mais recôndito de sua mente, não estará pensando em algo? Que formas de medo, de tentação, de provação, que consolações, alegrias, que auxílios uma alma pode sentir nesse momento?”

Mais uma vez, é compreensível que tal circunstância, repassada de incertezas, seja de molde a causar temores no homem.

Admirável tranqüilidade na hora da morte

Agora voltemos ao exemplo de São João Fisher, e consideremos até que ponto admirável esse santo levou a virtude da vigilância e do examinar-se a si próprio. Pois, afinal, ele recebe a notícia da morte com toda a serenidade e, em seguida, pede que lhe concedam mais duas horas de sono. É uma extraordinária despreocupação diante de sua partida iminente deste mundo: “Não dormi bem à noite, estou com sono, deixem-me repousar um pouco mais”.

E adormece na paz de sua alma, pois a sabe pronta para comparecer diante de Deus, e nos braços d’Ele repousa até o momento de se deitar para o descanso eterno. É, sem dúvida, uma impressionante manifestação de limpeza de consciência, como também a de um auxílio sobrenatural por onde ele teve essa tranqüilidade na última hora de sua vida.

Dali a pouco ele acorda, levanta‑se, prepara-se e se apresenta calmo ao oficial que vem buscá-lo.

Medo de ter medo

Dirigiu-se ao local do suplício e, ao pé do cadafalso sentiu que a fraqueza humana poderia falar mais alto. Ele teve medo de vir a ter medo, de perder algo daquele magnífico estado de alma em que se achava para enfrentar a morte. Então pediu que os presentes rezassem por ele.

Quanta razão tinha o santo nessa desconfiança de si mesmo! Pois ali, no patíbulo, sofreu uma longa insistência por parte de seus algozes que o queriam perverter e fazê-lo renegar a fé católica. Esse assédio no último momento não era gratuito: sabiam que se aquele homem aceitasse as propostas heréticas, seria um triunfo para a causa anglicana, e nada mais sedutor do que ter de escolher entre o dizer “sim” e a morte. Se ele aceitasse, sairia daquele cadafalso cercado de honras e aplausos. Naquela noite dormiria em algum palácio, no meio do conforto, e com alguns anos de vida regalada pela frente.

Porém, São João Fisher teve medo do próprio medo, receava uma tentação do demônio naquela hora, reconheceu que poderia cair, e por isso, praticando a virtude da vigilância recomendada pelo Divino Mestre, pediu a oração dos outros em seu favor. Sobretudo, deve ter implorado a intercessão de Maria Santíssima junto ao trono de Nosso Senhor Jesus Cristo.

Permaneceu inabalável na sua fé, foi decapitado e assim recebeu a coroa do martírio.

Confiando em Nossa Senhora teremos forças para enfrentar a morte

Eis para nós, católicos, um modelo de como enfrentarmos o momento de nossa própria morte. Tenhamos esse espírito de vigilância e humildade manifestado por São João Fisher. Nunca imaginemos que, por sermos devotos de Maria Santíssima e praticarmos boas obras de apostolado, não seremos tentados nem fraquejaremos na última hora.

Devemos, sim, pedir a graça de sermos vigilantes sobre nós mesmos, a graça de resistir sempre à tentação quando esta se apresente, compreendendo que o espírito pode estar pronto, mas a carne é fraca. De modo especial peçamos a Nossa Senhora que nos assista com sua misericórdia no momento de deixarmos este mundo rumo à eternidade. Como nos recomenda a Santa Igreja, a graça de termos uma boa morte deve ser pedida com toda a insistência, pois não sabemos o que pode nos suceder no derradeiro instante de nossa vida.

Essas considerações não visam criar pânico nem um terror malsão. Pelo contrário, quando o homem confia em Nossa Senhora — e, por meio d’Ela, em Nosso Senhor —, ao mesmo tempo compreende como a morte é terrível, mas para ela caminha com serenidade. Porém, insisto, cumpre entender a necessidade de implorarmos amiúde essa confiança em Deus e esse auxílio sobrenatural do Céu, único remédio para evitarmos o terror malsão diante da morte.

Sejam esses os preciosos ensinamentos a colhermos do exemplo de São João Fisher, Bispo, Cardeal e mártir da Santa Igreja Católica Apostólica Romana.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência em 21/6/1967)

 

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