O papel do belo sensível no conhecimento humano

No ambiente medieval, iluminado pela luz da Igreja Católica, o “pulchrum” sentia-se em casa, como a lamparina no candelabro. Os primeiros sintomas da decadência da Idade Média se manifestam quando o belo, em vez de servir à pureza e à ortodoxia, começa a ser empregado nos romances de amor e coisas análogas.

 

O  homem tem em comum com o anjo uma cognição intelectiva, a qual faz com que seja capaz de ver o “pulchrum” em certas coisas pelo raciocínio. Como considerar o “pulchrum”, na distinção entre a visão angélica e a humana?

Necessidade da beleza sensível para o conhecimento humano

Há no homem algo inferior ao anjo por onde essa cognição meramente intelectiva não lhe satisfaz, e precisa ser completada com a beleza sensível.

O que falta na cognição do homem para o belo sensível ser necessário? O anjo conhece a essência da coisa, enquanto o homem precisa do “pulchrum” sensível para ter uma ideia exata. O ver dá um conhecimento direto que o espírito angélico possui, e a nossa inteligência não tem.

Não se trata de um defeito do homem, mas é uma característica por onde ele é inferior ao anjo. “Minuisti eum paulo minus ab angelis… — Fizeste-o pouco menor do que os anjos…”(1). Mas o homem não é, por isso, um aleijado, um estropiado. 

Há, contudo, uma coisa na influência do “pulchrum” sobre o homem que é especialmente interessante.

Em nossa natureza concebida no pecado original, a capacidade que a vontade tem de se revoltar contra a razão — capacidade defectiva, má — é diminuída e, às vezes, como que congelada pelo “pulchrum”. Quando o homem se encontra diante de certas formas de beleza, ele fica como que paralisado, sem poder agir mal. Isso indica que esse modo inferior de conhecer dá à inteligência uma superior capacidade de controlar sua serva, a vontade.

E aqui entra um ponto muito importante para a perseverança do homem: até onde o “pulchrum” pode ser levado, em todos os seus aspectos, de maneira a garantir uma estabilidade, a maior possível, secundando a ação da graça?

É preciso notar que, a partir do Renascimento, certas formas mais ativas de beleza fugiram do acampamento católico e começaram a luzir no acampamento da Revolução.

No ambiente medieval o “pulchrum” sentia-se em casa, como a lamparina no candelabro. Antes de a Idade Média começar a decair, o mal era feio. Os primeiros sintomas da decadência se dão quando o belo parece ter mudado ligeiramente de acampamento e, em vez de servir à pureza e à ortodoxia, começa a ser empregado nos romances de amor e coisas desse gênero.

A beleza existente no Paraíso terrestre ajudava o homem a resistir à tentação

Imaginemos um Paraíso terrestre do qual o ser humano não tivesse sido expulso. Pelo fato de tudo ali ser belo, o homem teria uma certa dificuldade para cometer alguma falta, reduzindo ao mínimo a probabilidade de pecado, pois as condições terrenas fariam com que o aspecto e o modo pelo qual as coisas atingiriam os sentidos, tornasse notório para o ser humano o absurdo que havia no uso não reto ou no conhecimento superficial das criaturas.

O homem, no Paraíso, conhecia os animais pelo que havia mais de interno na natureza deles, e dava-lhes o nome. Como corolário disso, suponho que ele possuísse também um conhecimento, muito mais profundo do que tem hoje, de todo o resto da natureza. Esse conhecimento não podia ser uma mera notícia, mas um conhecimento analítico, ordenado a conhecer melhor a Deus, a ver a imagem e semelhança do Criador nas criaturas.

Isso tornava a sabedoria natural sumamente apetecível pelo homem nos seus impulsos naturais. E o ser humano inteiro caminhava para a sabedoria natural, não só levado por sua inteligência, mas também pela atração, que fazia com que todo o jogo de sua personalidade se sentisse atraído para isso. Mas também o mau uso da coisa natural tornaria muito mais patente ao homem que ele estava violentando e prejudicando aquilo, agindo contra a natureza.

Tomemos, por hipótese, um descendente de Adão que fosse tentado pelo demônio a agir irrefletidamente diante de uma ave bonita, digna, por exemplo, um faisão, e desse um pontapé no faisão e o machucasse. Tornar-se-ia muito mais sensível aos seus próprios olhos e de todos os outros homens, o horror da intemperança e o que esta deixou de feio nele.

A beleza da temperança e o pânico de pecar contra a temperança protegeria muito esse homem contra o risco de tentação, embora ele estivesse em estado de prova. Quer dizer, ele podia ser tentado, mas seria muito protegido contra o risco de cair na tentação.

Deus quis que o homem estivesse em estado de prova, e que no momento da tentação houvesse uma ilusão possível no espírito humano, como existiu no caso do fruto proibido. A tal ilusão maldita por onde o homem tem uma convicção de razão de que não deve fazer uma coisa, mas acompanhada de uma espécie de vivência por onde lhe parece que a razão está sendo desmentida por uma experiência imediata, e, por mais evidente que seja o fato de que aquilo é mal feito, alguma coisa lhe diz que, se ele fizer, age bem. Essa evidência é dada por um descolamento entre o mundo das realidades sensíveis exteriores e a realidade profunda.

Minha impressão é de que, no Paraíso, isso se daria muito menos, pois talvez o homem só pudesse ter essa queda por uma tentação do demônio, porque sua natureza íntegra não estaria inclinada ao pecado.

Devido ao pecado original rompeu-se o equilíbrio no homem

Com o pecado original, quebrou-se o equilíbrio e o homem ficou habitualmente tentado a não ver o belo como corolário normal do” verum” e do “bonum”. E, por causa disso, sujeito a toda espécie de arbitrariedades: fazer o belo que não é “verum” nem “bonum”; ou, pelo contrário, optar pelo “verum” e “bonum” e rejeitar o belo.

Com isso, ele conhece menos e está muito mais sujeito a uma revolta, porque fica propenso a amar um “pulchrum” que não é “verum” nem “bonum”, sujeitando-se, assim, a toda espécie de desordens.

Põe-se, então, a pergunta: o que o conhecimento do “pulchrum” acrescenta ao conhecimento do “verum” e do “bonum”? Nos eclipses do “pulchrum”, a que o homem fica sujeito?

Eu seria levado a dizer que a verdade só é cognoscível inteiramente quando se a conhece também bela. Há qualquer coisa no conhecimento puramente intelectivo da verdade, por onde falta algo.

Daí vinha o interesse com que eu sustentava a conveniência do Céu Empíreo. É para que o homem pudesse ter algo na sua natureza por onde ela inteira fosse apta, orientada propriamente a degustar.

Como temos uma natureza animal, embora nossa cognição intelectual seja inteiramente suficiente, a nossa natureza aspira por ter a notícia animal, a qual equivale, para a natureza animal, ao que para a natureza intelectual é o conhecimento racional. E essa notícia animal tem que estar em correlação com o conhecimento intelectual. Se faltar uma correlação nesse ponto, há qualquer coisa de psicologicamente rompido dentro do homem. E a notícia animal do “verum” e do “bonum” só pode ser o “pulchrum”.

A meu ver, essa distinção entre o conhecimento animal e intelectual no homem pode ser feita didaticamente, mas cada homem constitui uma pessoa integral, e não um anjo vivendo dentro de um animal, como a lâmina de uma espada no interior da bainha. Nós não estamos embainhados no animal. Deve haver, portanto, na nossa capacidade intelectual, um certo ponto por onde a notícia animal, enquanto tal, lhe acrescenta algo; como deve haver algo na notícia animal, susceptível de algum melhoramento pelo fato de ter sido compreendida.

A riqueza do instinto materno

Para exemplificar, eu mencionaria o seguinte: os Anjos têm entre si a relação maravilhosa que nós sabemos, mas não possuem a relação da paternidade e da maternidade, nem podem ter. Ora, esta relação acrescenta à nossa inter-relação uma beleza.

O papel do Anjo da Guarda com cada um de nós é lindo. Mas, por algum lado, o amor materno é mais bonito enquanto causador, porque o Anjo não nos causou. E, no amor materno, é muito belo fazer a distinção entre o papel desse amor enquanto virtude, conhecida pela razão e seguida pela vontade, e enquanto instinto. O instinto materno faz parte da animalidade, mas acrescenta algo ao amor como é no homem, que faz com que Nosso Senhor tenha se comparado a uma galinha que quer reunir seus pintinhos sob as asas.

No momento em que se percebe o instinto materno humano pôr-se junto com a razão para defender o filho, há uma riqueza que, por algum lado, é mais bonita do que o próprio Anjo da Guarda quando defende outra criatura. Então chegamos à conclusão de que, como o “pulchrum” é o deleitável da coisa, ele é indispensável ao instinto para que funcione.

O que se passa, por exemplo, com o instinto materno?

Ele conduz à tendência de imaginar o filho mais belo do que é; em atribuir-lhe qualidades mais altas para poder desenvolver-se inteiramente, enquanto instinto. De tal maneira as qualidades são necessárias num ser razoável, para que o próprio instinto possa exercer-se plenamente.

Ademais, o instinto materno faz descobrir no filho algumas qualidades que outros não descobririam. Por outro lado, ao sublimar o filho, mas de um modo virtuoso, a mãe cria o ideal da educação.

Poderíamos deduzir, então, que os símbolos, as pessoas, e tudo o que nos fala à nossa natureza humana integral, corpo e alma, devem fazê-lo, tanto quanto possível, consociados com a beleza e com o deleitável da coisa, de maneira a atrair a vontade inteira.

Isso é um postulado do que a ordem natural das coisas tem de mais profundo, porque quando o “verum” e o “bonum” são vistos naquilo que é deleitável pela natureza humana, em virtude dos instintos, há um ato mais completo. E, debaixo de certo ponto de vista, poder-se-ia dizer mais inteiro do que o angélico.

Temos uma melhor noção dessa realidade ao considerarmos, como acima fizemos, o modo pelo qual o amor angélico — em si, muito maior que o humano —, carece de qualidades que só o amor de mãe possui.

Encarnando-Se, Deus quis honrar toda a Criação

Uma pergunta muito bonita seria a seguinte: Tendo o Verbo de Deus, Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, Se feito carne para habitar entre os homens, não haverá conexo com isso um dizer de Deus aos homens que é, por alguns lados, mais alto do que o dizer de Deus aos Anjos?

Fico muito na dúvida, porque não refleti ainda sobre isso e, infelizmente, não tive tempo de ler sobre a Encarnação do Verbo o suficiente para dar uma resposta. Mas acho que é possível haver aí um caminho muito fecundo para uma série de interpretações das relações Deus-homem, a partir da Encarnação, de que não se tenha uma ideia exata.

Por exemplo, uma outra questão: Muita coisa que Nossa Senhora sabe a respeito de Deus não foi dada aos anjos conhecerem, em parte e a um título secundário, por causa da natureza humana d’Ela?

Que Deus pode ter revelado a Ela coisas que não revelou aos anjos, isso eu dou por certo. Entretanto, algo disso teria sido em consideração à natureza humana d’Ela? Aí vem todo o mistério da Encarnação.

Quem sabe se Lúcifer, ao tomar conhecimento da criação dos homens, e sendo-lhe revelada a Encarnação, revoltou-se ao saber que uma criatura tão inferior quanto o homem seria capaz de alguns conhecimentos que ele, anjo, não poderia ter…?

A afirmação de que Deus, encarnando-Se, quis honrar toda a Criação, contém uma profundidade talvez meio inexplorada para um bom número de estudantes de Teologia. v

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 7/3/1984)

Revista Dr Plinio 196 (Julho de 2014)

 

1) Sl 8, 6.

 

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