O mais belo mar! – I

Introduzindo-nos em considerações metafísicas sobre as mais variadas embarcações, Dr. Plinio nos convida a singrar os misteriosos, por vezes conturbados, mas sempre magníficos mares da História.

 

Há pouco, eu estava folheando um álbum, com panoramas da ilha de Porto Rico, e vi a fotografia de um transatlântico contemporâneo ancorado no porto. Transatlântico já não é bem uma coisa contemporânea. É um contemporâneo de ontem, porque hoje quase não há mais transatlânticos.

Mas o álbum deveria datar de uns dez anos atrás, quando os últimos transatlânticos brilhavam com seus últimos fogos e suas últimas luzes, sobre esses mares que vão ficando vazios de navios que transportam gente. São mares comerciais, rotas apenas de transporte de mercadorias.

A fotografia mostrava a cidade de Porto Rico, iluminada durante a noite com as luzes das casas refletindo-se sobre o Mar das Antilhas; e o transatlântico fortemente, quase feericamente iluminado com as luzes do tombadilho, do convés e das várias escotilhas que dão para os camarotes, todas muito acesas, formando quase um palácio de luz, junto ao porto um pouco escuro e refletindo-se também nas águas; pelo artifício da fotografia, era apresentada uma imagem verdadeiramente feérica do transatlântico.

O transatlântico: palácio de magnificência

Cogitando nisso, pensa-se no mar, na beleza de uma viagem transatlântica. Olhando aquele transatlântico de fora para dentro tem-se a impressão de um verdadeiro palácio flutuante. Se uma pessoa, fazendo o trajeto oposto ao do raio de luz, entrasse num camarote através de uma janelazinha, encontraria um ambiente de conforto, de distinção, de afago, de bem-estar, de agrado que lhe daria vontade de não sair do camarote, tão esplendoroso ele seria.

Poderíamos imaginar várias formas de camarotes: espaçosos, confortáveis, altos, ou pequenos, estreitos; superluxuosos, com cama de plumas, brocados, damascos, acolchoados, tapetes. O passageiro está com o ventilador ligado e a mão posta sobre uma mesa, pensando no tempo que corre, no navio que singra, nas ondas que passam, nas estrelas que se sucedem e no transatlântico que segue a sua rota; e ouvindo o mar que, com os seus mistérios, seus perigos, do lado de fora, como que, bate inutilmente na porta do camarote enquanto que o passageiro, dentro, sente-se tão bem, meio isolado do mundo. Dentro do mundo feérico do transatlântico há a feeria da imaginação que ajuda a pensar a respeito daquilo tudo.

Então se tem a impressão de que cada cabine do transatlântico é um ninho de bem-estar e de luxo dentro de um palácio de magnificência, de largueza, distensão e movimento.

Suponhamos que uma pessoa caminhe pelos corredores estreitos do navio, transitando diante das portas hermeticamente fechadas para quem passa. Atrás de cada uma daquelas longas portas, todas anônimas, há um passageiro que, numa viagem de alegria ou de dor, separação ou união, esperança ou decepção, ganância ou vontade de prazer, vai rumando para um destino que não tem nada que ver com o dos seus vizinhos.

Ela tem a impressão de que atravessa uma longa constelação de mistérios fechados, que se cerraram; por fim, chega aos grandes salões, tomando dois andares do transatlântico: um salão chinês de laca vermelha, um salão francês de sedas cor de água meio verde, e assim por diante, até o clássico bar alemão, com os seus pães pretos, suas linguiças, suas cervejas, seus chocolates e seus antegozos da Europa que vem chegando.

Tudo isto constitui um palácio em cujo interior gostamos de pensar e de imaginar que andamos, muito mais do que nesses poleiros ou nessas gaiolas de gente, chamadas avião, nos quais se viaja a toda pressa. Nos aviões, a beleza do ar externo não tem nenhuma consonância com o homem, o qual só toma conhecimento do que se passa no ar, mais ou menos, como um produto enlatado conhece o que se passa na vida fora dele. É enlatado que o homem percorre essa coisa tão diáfana, o ar, o qual, depois de passar por tubulações viciadas e nada possuindo da sua pureza originária, só entra no avião por uns esguichos dirigíveis que assobiam em cima do passageiro.

Caravela: sensação do risco e do heroísmo

Podemos imaginar quantos navios percorreram os mares. E a feeria das embarcações, com as suas várias formas, começa a passar por nossos olhos.

Se nos reportarmos não mais aos transatlânticos desta última fase — fim e apogeu dos transatlânticos de metal — mas, recuando no tempo, às caravelas: oh! que beleza! Entretanto, que desconforto para o corpo! Não há a cabine maravilhosa! Nem o salão chinês de laca vermelha, o substancioso bar alemão, e nem um pouco o charme do salão francês!

Mas há outro charme! O porão do navio realmente é rude, duro, inóspito, porém que tombadilho! Este possui magníficas “chaises longues”, com forma anatômica, onde a pessoa se deita, de maneira a ter a impressão de que não possui corpo? Nem um pouco! Nele há um serviço de restaurante estupendo, oferecendo “whisky”, “gins-tônicas”, sorvetes? Não!

No tombadilho da caravela existe outro jogo de belezas e encantos! O transatlântico moderno levava o homem a não prestar atenção no mar, no ar, a esquecer-se de que estava navegando. Era um palácio ambulante tão deslumbrante, que só se dava atenção ao palácio. O resto era quase acessório.

Pelo contrário, o velho veleiro, na sua rudeza, oferecia coisas simples. Mas que coisas! Antes de tudo, velas estupendas, em castelo, em ponta, umas com a Cruz de Cristo ou as quinas de Portugal, outras com armas da Espanha, da França, do Sacro Império, de algum reino da Itália ou da Inglaterra. Ele oferecia os ventos desencadeados e furiosos das tempestades, o odor salino das ondas que inundavam às vezes o tombadilho e voltavam deixando suas madeiras embebidas de água; mas o homem, com a sensação do risco e do heroísmo, ia cortando o vento e fendendo a natureza; ou as noites doces, estreladas, tépidas, nas quais se tinha a impressão de que cada estrela sorria para cada passageiro e estavam tão próximas que se poderia brincar com cada uma delas, como se alguém acendesse uma maravilhosa luz e surgisse um céu recamado de lâmpadas de Aladim!

Então, havia a doçura das brisas que bailavam em torno do rosto, afagavam, faziam promessas do feliz destino da viagem. Ou, nas noites escuras, misteriosas, o deleite da incerteza. Ao avançar, o veleiro produzia a sensação de uma conquista no escuro, de uma conquista, por isso mesmo, bela. Cada pessoa se sentia dignificada.

Que riqueza existe na alma do homem e no universo feito por Deus para haver todo um conjunto de jogos de deleites diferentes! E como os deleites do veleiro antigo são superiores aos deleites do transatlântico moderno!

Espírito admirativo

Quando falei do transatlântico, referi-me à cabine recamada de damasco – eu gosto de damasco. Em nossa sede principal há uma sala recamada de damasco; chama-se Sala da Tradição. Aquele damasco foi comprado em Buenos Aires e eu quis que ali ele fosse colocado para a glória de nosso Movimento, o qual somente visa a glória de Nossa Senhora.

Aprecio muito tudo isso. Gosto de ter uma alma tal que saiba admirar os brocados de uma cabine de um transatlântico, e também as tempestades com as quais se defronta um veleiro. Admirar esses diversos jogos de coisas, compreendê-las e ter a alma bastante flexível para se embeber de todas elas até o fim, e perceber que ainda possui outras disposições de espírito para admirar outras coisas: aí está, verdadeiramente, uma vastidão maior do que a do mar. Eu não hesito em dizer, maior do que a do ar; essa é a vastidão de qualquer alma humana que verdadeiramente saiba admirar!

Basta sabermos admirar e termos a alma com todas as elasticidades da admiração, para sermos capazes de gostar das coisas. Por causa disso, depois de passarmos pelo veleiro magnífico da era dos descobrimentos, rumando para trás, chegaremos a uma época em que o Oceano Atlântico quase não era navegado.

Então, sair do Estreito de Gibraltar, dar a volta pela Península Ibérica e chegar ao Canal da Mancha era um verdadeiro risco, uma temeridade. E o aventureiro que chegasse até os Açores ou as Canárias era tido quase como um Cristóvão Colombo, de tal maneira o homem pouco conhecia o mar. A brutalidade do Oceano Atlântico, tão menor que a do Pacífico, deixava aterrados os nossos remotos antepassados europeus.

A epopeia da conquista dos Lugares Santos

Na Idade Média, os homens, em navios pequenos, tinham a audácia de atravessar o Mediterrâneo, hoje quase considerado um lago. Naviozinhos sem grande beleza, com pequenas velas triangulares, nos quais iam homens magníficos: os cruzados! Neles poderíamos admirar Godofredo de Bouillon, São Luís e tantos outros que iam aos grupos para a Terra Santa. As navezinhas, sem beleza no seu aspecto material, conduziam homens com almas cheias de beleza.

Nas cruzadas de São Luís, podiam-se ouvir à noite os guerreiros cantarem o “Salve Regina, Mater Misericórdiæ”, que um monge de Cister, chamado Bernardo de Claraval, acabava de compor e que, como um frêmito, atravessara a Cristandade inteira. E depois, chegando ao Oriente, São Luís, com sua armadura de ouro, saltava dentro da água com pressa de pisar em terras do Egito, para atacar o adversário e começar a epopeia da conquista dos Lugares Santos.

Aí se percebia outra forma de beleza, não do navio, da vela ou do Mediterrâneo com o seu azul magnífico, mas da alma humana, mais bela que o mar. Bonito é o Sepulcro de Cristo que se trata de libertar. Mais belo ainda é Cristo Ressurrecto de dentro do Sepulcro, que se trata de glorificar.

Os vikings

E, indo mais para trás, somos transportados pela imaginação para outro tipo de navegação.

Na Europa nórdica, encontramos o Mar do Norte com suas brumas. Nas porcelanas dinamarquesas essas brumas são magnificamente representadas: um azul que se desfaz numa neblina prateada; uma neblina prateada que se desfaz em azul. Não se percebe bem o que é água e o que é neblina em toda aquela massa indefinida, dentro da qual os dinamarqueses de hoje gostam de representar algum peixe ou outra coisa viva, mas no interior dela eu gosto de imaginar a presença dos vikings.

Dos vikings dos antigos tempos, daquelas tribos com duzentos, quinhentos homens no máximo, que se aventuravam em frotas de barcos magníficos, com aquela quilha parecida com o pescoço do cisne, que vem para trás e se joga para frente. Tinham ao mesmo tempo a elegância do pescoço do cisne e a agressividade do bico de uma águia.

Quinhentos homens utilizavam aproximadamente cem barquinhos. Eles se chamavam reis do mar, porque era o reino inteiro que viajava. Enquanto as mulheres ficavam numa ilha ou num lugar qualquer onde não pudessem ser atacadas, os homens singravam os mares para descobrir terras novas a fim de levar as famílias; ou iam simplesmente à pesca de baleias, arenques e outros bichos para se alimentarem durante o inverno.

Podemos imaginar como eles viajavam. Nas horas de perigo, todos com escudos encostados uns nos outros, fazendo um paredão de um lado e do outro, com a mão esquerda seguravam o escudo e com a direita a lança em ponta, e cantando canções “pré-wagnerianas”. Depois de uma navegação arriscada, entravam por um fiorde escarpado da Noruega ou um porto brumoso da Inglaterra ou, indo mais além, chegavam até a Islândia, a qual representava já algo do mundo novo que se tratava de atingir.

Que série de embarcações maravilhosas! Entretanto, quanta outra coisa se poderia dizer sobre navios!

Veneza, a feérica, perdeu o império comercial dos mares…

Minha imaginação se reporta a outro quadro completamente diferente.

“Ancien Régime”(1): delicadezas, reverências, elegâncias. Uma cidade à beira-mar. De noite, brilham luzes e fogos; de vez em quando, cravados no fundo do mar, uns espetos com lanternas. É Veneza, a feérica!

Na cidade há uma expectativa geral. De longe, ao mar, ouve-se uma música de Vivaldi; depois se veem as luzes e se percebem as flores, das quais se sentem os perfumes; escutam-se as batidas suaves dos remos: é uma nau toda dourada, com as elegâncias do estilo do “Ancien Régime”; na frente, uma figura alta, com um barrete frígio, com aquela parte voltada para a frente, e todo vestido com um traje de cor bordô profundo e que olha como um rei.

É o Doge de Veneza, que volta na sua famosa nau de gala, o Bucentauro, da festa dos desponsórios de Veneza com o mar. Para realizar esses desponsórios, à tarde miríades de gôndolas saem, cujos gondoleiros tocam violinos e cantam festivamente; e o Bucentauro com o famoso conselho dos dez, tendo o Doge, à frente, homens e damas de sua corte, ao som de músicas. Vão até alto-mar do Adriático e, no momento solene, todos param, os remos se levantam. Expectativa geral. O Doge toma, de um escrínio precioso, um precioso anel e o joga no fundo do mar: é o casamento, os desponsórios de Veneza com o mar!

Isso afirmava outrora o poder de Veneza sobre o Adriático e o Mediterrâneo; posteriormente houve a Veneza de Marco Polo, que mandava homens ir a pé até a China e, quando voltavam, contavam o que viram.

Mas depois uma nação espalhou em Veneza a desolação. Barcos dessa nação atracaram em Veneza e deles desceram homens altos e bem largos, robustos, olhos e cabelos pretos, pele clara, passo firme, decidido, falar cantante e franco. Mostravam especiarias, dizendo: “Todas essas coisas procedem do Oriente. Nós as trouxemos por mar! Demos a volta à África, pelo Cabo da Boa Esperança!”

Contam os historiadores que os nossos ancestrais portugueses puseram à venda as mercadorias que eles traziam – pimenta, cravo, canela, açúcar, baunilha – a preço de arrebentar o varejo veneziano. Era a prova de que o domínio das especiarias pertencia a Portugal. Não se vinha mais por terra, mas por água. Portugal tinha rasgado o monopólio veneziano e, como também a Espanha faria depois, inundou a Europa com as especiarias. Houve, então, dias inteiros de pranto e consternação em Veneza.

…mas ganhou o império da beleza

Não conheço a História de Veneza nos seus pormenores, mas foi com certeza nessa circunstância que se deu uma revelação para Veneza; ela perdeu o império comercial dos mares, mas não tinha percebido que ganhara um império muito mais precioso: o da beleza.

Veneza aproveitara o tempo de sua riqueza para se encher de palácios, de obras-primas imortais e para tornar-se umas das cidades mais belas e talvez a mais original de todo o universo. E quando ela começou a decair comercialmente, as nações, inconsoláveis pela sua decadência, começaram a visitar a feérica moribunda que ia expirando. E todos lhe traziam a sua contribuição, o tributo de sua admiração: o ouro do turismo que começava. Veneza foi, talvez, o primeiro centro internacional de verdadeiro turismo. O mundo inteiro se encantava e lá gastava dinheiro, pois não queria que Veneza morresse!

Então Veneza compreendeu que, continuando a vida de luxo, de festa, de arte, prolongava sua própria vida; e que ela estava casada com o “pulchrum”, possuía uma beleza imortal. Somente nessa ocasião ela se deu conta, pela admiração dos homens da terra firme, de que cada um de seus quarteirões é como um transatlântico, e de que Veneza se assemelha a uma esquadra maravilhosa, fixa no fundo da laguna: em cada ilha, cada bloco de casas é admirável. Veneza é muito mais do que o transatlântico que, no começo desta exposição, eu fiz figurar diante de vossos olhos.

Vós ficastes encantados quando falei do transatlântico de Porto Rico. Ao ver a fotografia dele, encantei-me também; mas quando terminamos nossa viagem em Veneza, que baixa de nível esse transatlântico! Nosso espírito foge espavorido e não tem vontade de pensar nas magníficas caravelas portuguesas, nem nas naus vikings. Chegou a Veneza, parou! Ali existe qualquer coisa de feito, de acabado, de definitivo.

Percorremos mentalmente vários tipos de navios. E em cada um deles as cordas de nossa admiração, como o alaúde chinês — que aqui foi tocado no início de nossa reunião —, vibraram de um determinado modo. E fomos transportados, assim, da vida quotidiana, da terra firme, para outros horizontes. Acabamos de velejar pelos mares da História, e compreendemos que esta é um mar mais bonito do que todos os mares.

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 10/11/1979)

Revista Dr Plinio (Fevereiro de 2012)

 

1) Período da História da França que precede a Revolução Francesa.

 

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