Ó Igreja Católica!

Diante da Catedral de São Marcos somos objeto de uma determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”

Quando se faz uma viagem muito cheia de impressões, densa de coisas que se viu e sobre as quais se pensou – ao menos no meu espírito é assim –, nem tudo aflora imediatamente. A pessoa deixa repousar as impressões de viagem e depois elas vão se evolando de tempos em tempos, mais ou menos como as flores que demoram para exalar todo o seu perfume. Passa-se por uma flor, ela se abriu e esparge seu perfume novo. No dia seguinte ela não está recendendo a nada, mas no terceiro dia, quando se pensa que já deixou de exalar sua fragrância, há uma segunda onda de perfume que se exala da flor, e assim por diante. Deste modo são também as recordações de viagem: há várias exalações consecutivas, de vários significados e bons aromas que se vão apresentando, formulando-se à medida que o tempo passa.

Obras impregnadas pelo sobrenatural

Recentemente consegui explicitar melhor alguma coisa que me vinha à mente em minha última visita à Europa, pela comparação entre a impressão que o Velho Continente me causou nas anteriores viagens e a que tive nesta.

Para ficar bem clara a questão, parece-me melhor exemplificar em concreto com a Catedral de São Marcos. Antes, porém, dou uma pequena introdução e depois faço a aplicação.

Suponhamos que um escritor como São Bernardo redige um sermão sobre Nossa Senhora, ou um rei como São Luís IX publica suas Capitulares, isto é, uma legislação sobre um determinado corpo de assuntos. Mas tudo é feito com espírito católico e com a intenção de servir à Santa Igreja e à Civilização Cristã. Por causa da intenção que presidiu a isso, a graça pousa, por assim dizer, naquela obra. E quem a lê tem duas impressões.

Uma natural e humana que a leitura daquele texto pode causar. Por exemplo, São Bernardo é um escritor exímio, de grandes voos literários, um notável burilador da língua francesa, sob o impulso de quem esse idioma explicitou de sua genialidade original tais aspectos novos. São impressões naturais que nos vêm ao espírito, causadas pela leitura do trabalho de São Bernardo.

Mas como aquela obra foi feita por amor de Deus, com a intenção de despertar pensamentos sobrenaturais inspirados pela Fé e tendentes à glória do Criador, entra também uma graça, porque ninguém é capaz de pensar uma obra com base na Doutrina Católica, nem de querer uma coisa para o bem da Santa Igreja ou para a glória de Deus, que não seja pela graça.

Sem auxílio dela ninguém pode fazer essas operações intelectuais e da vontade, pois o homem  é inteiramente inerte e incapaz de as realizar se não tiver o auxílio da graça.

Assim, São Francisco de Sales – para tomar outro autor – escreveu a “Filoteia”, a “Introdução à Vida Devota”, e quem a lê tem a impressão de estar essa obra embebida pela graça, e é absorvido  pela graça que baixa de Deus, mas ajustada, correlata ao texto lido.

Então, ao operar natural da inteligência, da vontade e da sensibilidade, soma-se uma operação de origem sobrenatural pela qual na leitura a pessoa percebe belezas novas de caráter absolutamente superior, extraordinário. Às vezes elas reluzem aos olhos do espírito do leitor através de um fenômeno da mística. São de uma pulcritude maior do que todas as belezas naturais, pois o  sobrenatural vale mais do que o natural.

Amor de Deus, corolário das construções medievais

Isto que se diz a respeito de escritos pode-se igualmente aplicar a monumentos, catedrais, imagens, obras de arte. Por exemplo, as estalas superiormente bem esculpidas de um convento, uma  armadura medieval, um vitral, obras estas realizadas com espírito sobrenatural para o serviço de Deus, mas também com uma finalidade natural. Quem as vê é visitado por uma graça que lhe faz compreender as analogias que elas têm com realidades sobrenaturais.

De onde um muito grande apreço do homem por aquilo que ele vê. Por exemplo, a Catedral de São Marcos e a de Notre-Dame de Paris. Mas não apenas catedrais, às vezes são edifícios destinados a uma finalidade civil, como uma fortaleza, um castelo, que é a residência de uma família feudal e, ao mesmo tempo, a defesa desta família e da população, do burgo vizinho, contra possíveis agressões de maometanos, de bárbaros. Portanto, uma finalidade natural.

Mas o castelo com aquelas torres, aquele jogo de ameias e barbacãs, dá uma impressão sobrenatural, proporcionada pela graça, e que vem do fato de que o castelo simboliza extraordinariamente bem para nós a virtude da fortaleza, enquanto praticada por amor de Deus.

Assim, chegamos à conclusão de que muitos dos monumentos existentes na Europa foram construídos na plena era do amor de Deus, isto é, no apogeu da Idade Média. Outros em épocas posteriores ou anteriores. Nas anteriores, enquanto o gótico começava apenas a ser vislumbrado pelos seus primeiros artistas, o românico era o estilo usado.

Tinha ele, entretanto, charmes, encantos em que algo do sorriso todo cheio de afabilidade, de majestade e de uma discreta melancolia do gótico ia se formando, aparecendo, o que pode ser notado num edifício, numa praça, etc. Ademais, é possível que a graça dê à pessoa um especial discernimento do espírito com que, em concreto, aquilo foi construído. Então, diante da Praça do Paço Municipal de Siena, a pessoa pode ter um discernimento especial de qual era o espírito dos sienenses daquele tempo, de como entrava ali a graça, e fazer uma recomposição das famosas “contradas”, aqueles jogos entre as corporações e associações religiosas, que despertam esse ou aquele estado de espírito. Então aqui está uma ordem de ideias.

Há locais impregnados pelo sagrado…

Passo a considerar agora outra ordem de ideias. Não é mais o estilo, a aparência material, nem mesmo a mentalidade dos que planejaram, executaram ou viveram em determinado lugar, mas é a natureza dos atos que ali se passaram.

Há um princípio admitido pela piedade católica segundo o qual, quando em um ambiente se passou algo de muito sagrado, aquele lugar fica de algum modo sagrado também. Vou dar um exemplo de tal maneira supremo que, por assim dizer, estoura o assunto, mas enfim de um estourar sagrado, magnífico: o Horto das Oliveiras, onde se deu o primeiro mistério doloroso do Rosário, a  Agonia de Nosso Senhor Jesus Cristo. “Agonia”, em grego, quer dizer “luta”.

Então a luta de Nosso Senhor contra o legítimo arrepio de seus sentidos diante da perspectiva da morte que deveria vir, com tudo quanto a antecedeu. Ali, onde Ele disse: “Pai, se for possível afaste-se de Mim este cálice, mas faça-se a vossa vontade e não a minha” (Lc 22,42).

Veio então um Anjo – o qual podemos imaginar cercado, nimbado de uma luz ao mesmo tempo alvíssima e triste por causa da tarefa que ele devia executar – levando para Nosso Senhor um cálice de uma bebida que haveria de Lhe dar força sobrenatural para tudo aquilo que Ele suportou na Paixão.

Então, onde Ele esteve, sofreu e derramou o primeiro Sangue da Paixão, tudo isso torna sagrado  lugar em que essas cenas se passaram. Por essa razão, quando se está naquele lugar recebem-se graças, não raramente sensíveis, pelas quais a alma é levada ao amor de Deus, à contrição, ao arrependimento, à compunção, à piedade, à compaixão para com o Cordeiro de Deus que ali sofreu para nossa salvação.

Aquele lugar tem bênçãos especiais.

…outros, habitados por uma graça

“Mutatis mutandis”, os locais onde se passaram grandes fatos históricos, eminentes atos de coragem, de virtude, de renúncia, na História da Cristandade, tornam-se lugares particularmente dignos de reverência. Às vezes até fatos sem uma relação direta com a Religião, mas nos quais reluz algo do espírito católico.

Vem à minha memória a execução do Duque d’Enghien, ordenada por Napoleão. Esse duque, último da linhagem dos Príncipes de Condé, reunia em si o aspecto heroico, a estampa afidalgada, a coragem, a ousadia, quase a temeridade de seus antepassados. Possuía qualquer coisa do espírito repentino e irresistível do Grande Condé.

Napoleão tinha intuitos de acabar com esse último descendente da Casa dos Condé, e para isso aproveitou-se do fato de que esse duque estava noivo de uma princesa francesa residente não longe da fronteira alemã, mas do lado alemão, onde a tropas de Napoleão não podiam penetrar. O Duque d’Enghien foi visitar a noiva e quando o Sol já havia se posto, Napoleão mandou um destacamento transpor o Reno, entrar nesse  lugarzinho, agarrar o Condé e levá-lo preso para a França.

Depois de um simulacro de julgamento, que ninguém toma a sério, mandou matá-lo. A calma do Duque d’Enghien nesse momento extremo, sua dignidade, presença de espírito – segurou calmamente a lanterna para que os tiros acertassem nele –, suas últimas cartas, tudo isso tem um aroma de Cavalaria. É bonito ver esse cintilar de luzes da Cavalaria, brilhando na época miserável em que o mundo estava conspurcado pela Revolução Francesa.

Estando em Vincennes, e sabendo onde o Duque foi executado, eu quereria ir visitar o local em espírito de peregrinação. Não tenho nenhum documento comprovatório de que esse homem fosse especialmente piedoso. Dói-me a hipótese de que não o tenha sido. Apesar disso, não há dúvida nenhuma de que se ele não descendesse de ancestrais católicos, não seria essa flor do heroísmo católico a desabrochar dentro da poluição imunda da Revolução Francesa. Portanto, nessas condições, eu iria em espírito de peregrinação ao lugar onde ele foi imolado com tanto garbo, tanta galhardia, e rezaria por sua alma.

Isso nos dá a impressão – notem bem, não é a realidade – de que as cenas ocorridas em determinados lugares, como que ainda estão se passando ali. É fora de dúvida que aquele passado todo revive, e para quem está ali ele tem um prolongamento, uma continuidade misteriosa que emociona especialmente o visitante. Onde existem coisas assim, houve graças extraordinárias.

E do mesmo modo como a graça desce à alma de quem lê, com trezentos anos de diferença, um livro de São Francisco de Sales, ela também age na alma de quem, duzentos anos depois, visita o lugar onde o Duque d’Enghien foi fuzilado.

Essa impressão de lugar habitado pela  graça, no qual se tem a impressão de que os fatos revivem e entramos numa misteriosa intimidade com eles, é altamente benfazeja para o espírito e enriquece o sentir, o degustar do homem que se encontra nesse local.

Desejo do maravilhoso inspirado pela Fé

Tomemos, por exemplo, a Catedral de São Marcos. Vista durante a noite, quando não há turistas e os pombos estão dormindo, a catedral apresenta-se na sua majestosa solidão, esplendidamente iluminada, deixando perceber o branco reluzente do mármore de que foi construída, bem como seus pormenores magníficos, e torna-se especialmente evidente sua linha geral.

Faço notar as três profundidades para a vista humana diante dessa catedral. Em primeiro lugar, as arcadas que têm como centro um arco maior com um magnífico mosaico e, acima, um terraço.

Constituem o primeiro corpo do edifício. Depois, uma espécie de ogiva central muito grande, onde se percebem os famosos cavalos, dois torreões, e de cada lado duas ogivas muito abertas, encimadas cada qual com uma figura. Por fim, constituindo a terceira dimensão, encontram-se as cúpulas ladeadas de umas torrezinhas.

Diante dessa catedral somos objeto de uma determinada impressão a respeito do desejo de maravilhoso, de grandioso, inspirado pelo espírito de Fé, com que, em louvor de São Marcos, ela foi construída. É uma das mil cintilações deslumbrantes do espírito católico que se manifesta ali, de maneira que, ao contemplá-la, uma pessoa pode dizer: “Igreja Católica é isto. Ó Igreja Católica!”

Entretanto, dentro dessa catedral passaram-se fatos históricos da maior importância que determinaram rotações inteiras na História da Cristandade, das nações banhadas pelo Mar Adriático, que se manifestaram na História de Veneza e da Itália, episódios ora de violência, ora de refinamento político e esperteza levada a um grau inimaginável.

Veneza era uma escola de diplomatas extraordinários. Nos arquivos dessa cidade se conservam relatórios que os embaixadores venezianos mandavam periodicamente, contando o que se passava nos países onde viviam. As narrações são tão bem feitas, tão seguras – de tal maneira eles sabem evitar boatos –, as análises tão finas e tão sutis, que essas cartas servem de fonte ótima para a História de qualquer país da Europa.

Imponderável de São Pio X em Veneza

Assim, pelo auxílio da graça, temos não apenas uma percepção do espírito de Fé que levantou tudo isso, mas também uma ideia dos mil fatos que ali se passaram. Um desses fatos se deu no começo do século XX. São Pio X, antes de ser eleito Papa, era o Patriarca de Veneza, portanto, Cardeal e Arcebispo daquela cidade. Quando morreu Leão XIII, convocaram o Conclave. São Pio X – então Cardeal Giuseppe Sarto – comprou passagem de ida e volta, pois ao que parece ele não contava com a possibilidade de ser eleito e, ademais, não tinha vontade nenhuma. Ainda nas vésperas de sua eleição, o Cardeal Sarto julgava que não seria escolhido, mas como, de repente, as coisas viraram e sua escolha tornou-se iminente, ele chorou, porque tinha pânico de ser Papa, pelo peso da responsabilidade do Papado.

Podemos imaginar a última visita desse Santo Cardeal, pouco antes de tomar a gôndola para se dirigir ao Conclave; sua longa figura esguia, com os trajes cardinalícios, cabelos já muito brancos, ele mesmo alvíssimo, acompanhado de seus secretários, monsenhores, prelados, entrando na Basílica de São Marcos para rezar. Depois, com o coração pesado de presságios que via apenas obliquamente, ele tomar a embarcação e partir para o lugar de onde o trem o conduziria até Roma.

Seria a cena de Veneza despedindo-se do mais recente dos Papas canonizados, que previu e combateu a crise do modernismo. Quem passeia por debaixo dessas colunas do átrio ou transpõe a porta, pensando em tudo isso, tem a impressão de que São Pio X encontra-se um pouco aí revivendo tudo isso. De fato, ele não se encontra, mas está presente uma graça relacionada ao que se passou e que torna especialmente sagrado esse lugar.

Passeando de gôndola pelos canais de Veneza

Em minha última viagem à Europa, tive diante de muitos monumentos a impressão triste, de cortar o coração, de que essas graças tinham se retirado, e as cenas históricas ali desenroladas haviam perdido o nexo sobrenatural com aqueles monumentos. Ou que esses restos de continuidade da graça estavam nos seus últimos lampejos e já iam desaparecendo, o que a multidão de turistas não censurava, e nem sequer sabia ser possível sentir isso, e visitava a Catedral de São Marcos, por exemplo, mais ou menos como se visita um museu.

No entanto, essa densa presença de sobrenatural e de história, que em Veneza é incomparável, ainda senti quando tomei uma gôndola para passear pelos canais da cidade. Navegando no escuro entre aqueles palácios, tem-se a impressão de estar participando da vida psicológica, temperamental, social, daqueles personagens de trajes medievais ou do tempo das monarquias absolutas, com máscaras como se usava em Veneza, o bater dos remos na água, o brado dos gondoleiros para evitar trombadas; de repente, vê-se um homem que, ao passar diante de uma casa onde não quer ser reconhecido, pega o seu manto e cobre o corpo inteiro, só se desvendando mais adiante… Esses mistérios todos de Veneza temos a impressão de que ainda vivem, e nos metemos no meio deles ao passear de gôndola à noite pela cidade.

O uso da lancha nos canais já estraga isso, porque o mistério vai embora. A lancha tem o determinismo estúpido das coisas mecânicas. O bonito é o silêncio, o mistério e o deslizar lento da gôndola, na qual os passageiros vão sentados meditando no que fizeram ou farão. Esse mistério tem seu charme.

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 11/1/1989)

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