Idealismo ou fruição da vida?

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“Se alguém quer vir após Mim, renuncie a si mesmo, tome sua cruz e siga-me. Pois quem quiser salvar sua vida, a perderá; e quem perder sua vida por causa de Mim, a encontrará” (Mt 16,24-25).
Dr. Plinio sempre teve vincado em sua alma este ensinamento do Divino Mestre, e continuamente admoestava seus discípulos a serem fiéis no cumprimento deste sublime conselho evangélico.

Muitas pessoas têm a ideia de que suas vidas lhes foram dadas para elas mesmas, a fim de viverem confinadas dentro de seus próprios interesses e sem noção alguma do que seja viver em função de uma causa.

O fato de a pessoa se contentar inteiramente em viver sem dedicar-se a uma causa, e nem mesmo ter ideia do que seja uma causa, cria a impossibilidade de ela possuir uma alta ideia de causa. Porque não tem ideia de algo quem não compreende nem sequer o que esse algo possa ser. Por exemplo, um cego de nascença não pode ter ideia do valor de uma cor.

Choque contra o primeiro Mandamento

O indivíduo faz este raciocínio: “Eu existo. Deus de um modo ou de outro me criou, estou aqui. Para a vida ter razão de ser, é preciso que ela me proporcione as fruições que são próprias a uma vida. Se essas fruições não me forem concedidas, eu não vivi”.

A razão da vida dele é fruir. Essa ideia se choca evidentemente com o primeiro Mandamento da Lei de Deus, que é amá-Lo sobre todas as coisas.

Mas há um equívoco, um erro, dentro disso, que funciona da seguinte maneira: “Eu sirvo a Deus não fazendo o que Ele proibiu. Dos Mandamentos, três são referentes a Deus, um manda honrar pai e mãe e os outros são negativos: não pode isso, não pode aquilo… uma obrigação e seis recusas. Se eu me abstiver desses seis atos, implicitamente terei praticado os três primeiros. Portanto, o campo de batalha é esse. Posso praticar todos os Mandamentos sem pensar nos três que se referem a Deus. Então posso reduzir ao seguinte: se eu for bom para os outros, não cometer pecado contra eles, terei dado a Deus aquilo que Ele mandou. Fora disso, o próprio Deus já dispôs as coisas para que houvesse a fruição. De maneira que eu fruo, porque tudo que não seja fruição não faz parte da finalidade da vida”.

E aqui está o erro e a falta de noção do que é “causa”.

Tese, ideal e causa

Vejamos o que significa causa. Causa não é apenas um ideal, mas um ideal posto em luta, em choque, a favor do qual trata-se de dedicar e que pode trazer consequências gravíssimas, dependendo das atitudes tomadas. Há diferenças entre tese, ideal e causa.

Tese é uma certeza que se tem e se demonstra, mas, tomada em abstrato, não traz nenhum engajamento de dever. Por exemplo, alguém sustenta que se deve dormir cedo, pois isso faz muito bem à saúde, e alega diversas razões benéficas, com base na Medicina, para provar sua tese. Enfim, cientificamente compreendo que isso possa ser assim, mas isso é uma tese.

Ideal já é uma tese que desperta na pessoa uma série de atitudes, de entusiasmos, de enlevos etc., e convida para uma dedicação.

Causa é o ideal que convida não só para a dedicação, mas para o sacrifício, para o esforço.

Por exemplo, a Doutrina Católica tem veracidade; é uma tese, ou seja, isso pode ser demonstrado. Ela não é apenas um ideal, mas o ideal. Mas ela é uma causa. Quer dizer, nós devemos vê-la como sendo hoje continuamente negada, contestada, conspurcada etc., ou em perigo de o ser. Por causa disso, nossa posição deve ser de defendê-la, dedicarmo-nos a ela. E isso é um dos aspectos distintivos da Igreja: ser militante.

Portanto, isso supõe as seguintes conclusões: a pessoa nasceu não para fruir, exceto no conhecimento dessa causa. Porque o resto é um fruir completamente secundário, não vale nada.

E nenhum ideal é digno desse nome enquanto não tenha uma relação, não encontre seu mais alto significado no ideal católico.

Colocar o centro de gravidade na causa

Explico melhor o que estava dizendo anteriormente.

A atitude privatista: “Tal coisa não é pecado, é um direito meu que posso eventualmente arguir até contra Deus — porque, no fundo, chega até lá! —, ou, pelo menos, Ele pode desejar muito que eu renuncie a tal coisa, mas não deu ordem. Logo, eu me salvo não dando essa coisa para Ele”. Essa posição torna impossível compreender inteiramente o significado do ideal católico.

Poder-se-ia perguntar se o homem que cuida demais de seu interesse privado não acaba arruinado. E a resposta é: Se está entregue às coisas do mundo, não; se ele se dedica a Deus, sim! Para um homem mundano, que cuida de seu próprio interesse de modo frenético, a vida pode lhe trazer desastres, por disposições da Providência. Mas alguém que serve a Deus e se põe muito a cuidar de seu interesse particular, está selado de antemão para a ruína.

Toda a questão é de “centro de gravidade”. A pessoa deve ter a coragem de colocar o seu “centro de gravidade” na causa. Esse é o problema. Enquanto não fizer isso, à medida que o indivíduo vai fazendo renúncias, ele vai se agarrando a fórmulas cada vez mais tênues e veladas de coisas em que ele possa continuar a ser o “centro de gravidade” do que ele executa. E o grande problema é deslocar de dentro de si o seu “centro de gravidade”. No fundo, é o gosto de sentir-se a si próprio. Por causa disso, acabam surgindo nos religiosos e em outras pessoas que se dedicam a Deus, manifestações as mais desconcertantes.

Portanto, trata-se de pedir a Nossa Senhora que  o nosso “centro de gravidade” seja posto em Deus e que o apego a si próprio deixe de ser o centro da vida.

Um religioso é uma pessoa que se deu a Deus nesse “centro de gravidade”, e ficou religioso para conseguir, a rogos de Maria, que o torne completamente d’Ele. Então todo o resto — consagrar‑se só às coisas divinas, obedecer ao superior etc. — são circunstâncias favoráveis para isso, mas não são o “clou”(1) da questão.

O verdadeiro ideal é como a luz que ilumina as trevas da vida

E quando a pessoa é chamada a dedicar-se a um ideal, ela foi destacada por Deus da condição de uma pessoa privada, destacada do “privatum” para o “publicum”. Ela se deu à causa, passa a ser uma pessoa pública, a ter estatuto público nesta ordem de coisas.

Deus faz a essa pessoa uma promessa implícita na vocação: “Se tu aceitares isso, eu falarei contigo como falava com Adão no Paraíso”. É uma analogia desse gênero. Deus se comunica com a alma, dando-lhe paz, alegria etc. Entretanto, fazemos isso não meramente para conseguir a paz, a alegria, mas para estar unidos a Nossa Senhora, e por meio d’Ela unirmo-nos a Ele.

Mas pode acontecer que o indivíduo restrinja o domínio do “privatum” a uma minúscula “ilha”. Isso tem seu mérito, é verdade. Mas naquela “ilha” ele é um Robinson Crusoé sem Sexta‑Feira, e acaba tendo um apego enorme. E há mais distância entre o homem que renuncia à “ilha do apego” e o que mora na “ilha” apegado, do que entre o homem que renuncia ao mundo para ir à “ilha”.

Vamos imaginar o seguinte processo: Um homem tem o mundo inteiro, renuncia a ele e vai para a “ilha” de uma vida religiosa. Depois, renuncia à sua própria “ilha” e se dá inteiramente a Deus. O segundo lance é maior do que o primeiro!

Não pode haver situação mais cheia de ânimo, de maior “lumen”, do que a de uma pessoa que resolve levar seu ideal até às últimas consequências, ainda que tenha de sofrer muito sacrifício para a realização do seu ideal. Porque o ideal em si, a presença dele, torna tudo leve, é a luz que ilumina todas as coisas do mundo.

Pode-se tomar o início do Evangelho de São João(2) e aplicá-lo ao ideal. Ele se aplica ao pé da letra, de tal maneira que Nosso Senhor Jesus Cristo é a personificação de todos os ideais santos, e todo ideal santo é um reflexo do Divino Salvador. Pode-se dizer que o ideal verdadeiro é a luz que brilha nas trevas da vida humana, e as trevas não conseguem abarcar esse ideal enquanto a pessoa o tem, enquanto está unido a ele.  v

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferências  de 29/3/1974 e 22/3/1980)

1) Do francês: prego; o ponto alto. Neste segundo sentido, indica o ponto central, o aspecto mais importante de algo.

2) “A luz brilha nas trevas, e as trevas não conseguiram dominá-la.” (Jo 1,5)

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