A História do Universo e sua interpretação doutrinária

Para Dr. Plinio, a formação doutrinária de seus discípulos era de capital importância. Por isso, ele não perdia nenhuma ocasião de aprofundar os mais elevados temas. Assim, na conferência abaixo transcrita, encontraremos uma magistral explicação sobre o que Deus teve em vista com a criação do Universo, bem como dos meios por Ele estabelecidos para o perfeito cumprimento de seus desígnios.

 

Pediram‑me para dar uma aula a respeito da temática do curso para formação de professores de Religião, e me pareceu que seria melhor não propriamente dizer resumidamente aquilo que os senhores devem desenvolver, mas dar a matéria como ela é, para daí tirarem aquilo que convém para os seus alunos.

Porque, evidentemente, nem tudo o que vai ser dito nesta aula convém aos alunos; mas é uma grande vantagem para o professor conhecer além do que ele vai ensinar. Propriamente só se impõe ao prestígio do aluno o professor a respeito do qual o aluno percebe saber muito mais do que ele está ensinando.

A respeito desta temática, nós poderíamos dividir a matéria da seguinte forma:

I – O fim que Deus teve em vista ao criar;

II – Os meios por Ele estabelecidos para que esse fim fosse realizado pelas criaturas;

III – Qual o uso desses meios feito pelas criaturas e em que medida elas se dirigiram para esse fim.

As duas primeiras partes são doutrinárias, a terceira é histórica. Trata-se de uma interpretação doutrinária da História.

Finalidade da criação

O que Deus teve em vista criando?

Como fim último, ao criar, Deus teve em vista a sua própria glória extrínseca.

Em Deus — também no homem — nós podemos distinguir a glória intrínseca da glória extrínseca.

Noções de glória intrínseca e de glória extrínseca

O que é a glória intrínseca? É o esplendor, a manifestação de dentro para fora das qualidades gloriosas de um determinado ser.

Por exemplo, Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz, transformado, segundo diz a Escritura, num leproso, tinha glória intrínseca. Quer dizer, Ele tinha um abismo de méritos, um abismo de virtudes, um abismo de capacidades; mais ainda, algo disso filtrava para fora, apesar de tudo quanto a flagelação e a Paixão introduziram de deformante n’Ele. Os senhores considerem, no Sacro Sudário de Turim, a face de Nosso Senhor depois de ter passado por tudo aquilo, e compreendem que transparecia n’Ele uma glória. Essa glória era a transparência externa de algo interno que residia n’Ele: era a glória intrínseca d’Ele.

A glória extrínseca é a glória que outros dão, que outros reconhecem, que outros tributam.

Por exemplo, Nosso Senhor ao entrar em Jerusalém, aclamado pelos judeus, tinha glória extrínseca e intrínseca, enquanto que Nosso Senhor, no alto da Cruz, tinha apenas a glória intrínseca.

No alto da Cruz a glória extrínseca não Lhe estava sendo dada. Ele tinha a glória, porque tinha o louvor de Nossa Senhora, e o louvor de Nossa Senhora vale insondavelmente mais do que desmerecem as blasfêmias de todos os judeus e de todos os demônios somados; mas exceção feita de Nossa Senhora, e digamos que das santas mulheres, Ele ali não tinha glória extrínseca, todo o mundo estava injuriando a Ele.

Na coluna da flagelação Ele não tinha glória extrínseca. Ninguém, dos que estavam lá assistindo a flagelação, glorificava a Ele.

Essa é a diferença que vai entre a glória extrínseca e a glória intrínseca.

A glória intrínseca é a posse de todas as perfeições. Isso dá ao indivíduo uma glória interna que ninguém pode lhe negar.

A glória extrínseca é o reconhecimento dessas perfeições pelos outros e o louvor que eles dão a essas perfeições.

Uma pessoa pode ter muita glória intrínseca e nenhuma extrínseca. É, por exemplo, o caso de uma pessoa que seja injustamente perseguida.

Glória intrínseca e extrínseca de Deus

A glória intrínseca, Deus a tem infinita, eterna, absoluta e nenhuma criatura pode aumentá-la.

A glória extrínseca — quer dizer, a glória que Lhe vem de fora — as criaturas que Ele criasse Lhe podiam dar: louvando, reconhecendo as qualidades d’Ele, prestando homenagem a Ele, amando-O, servindo-O.

Para isso Ele criou: para sua glória extrínseca.

Meios estabelecidos por Deus para que as criaturas realizassem o fim para o qual foram criadas

A glória extrínseca de Deus provém da excelência das criaturas feitas por Ele; ou seja, da semelhança das criaturas com Ele. Porque tudo o que é excelente é semelhante a Ele, e a semelhança das criaturas com Ele é a glória d’Ele. Nisso está a glória que as criaturas Lhe dão.

Por exemplo, esta água que eu estou despejando aqui e que, por coincidência, é uma água cristalina e transparente, dá glória a Deus porque as suas qualidades têm um vestígio das perfeições divinas. Algo do ser espiritual, no que ele tem de diáfano, no que ele tem de puro, no que ele tem de imaterial, se reflete na água cristalina; há um vestígio da glória de Deus nisso, e a água dá glória a Deus.

Mas os seres inteligentes e dotados de vontade dão glória a Deus, além disso, conhecendo a Deus, amando‑O, com isso tornando suas almas semelhantes a Ele, e servindo‑O. É assim que dão glória extrínseca a Deus.

Um homem não dá uma glória extrínseca a Deus como um boneco. O homem é vivo, é dotado de inteligência, deve querer ser parecido com Deus. Tudo quanto há nele de semelhante a Deus ele deve aprimorar, tudo quanto o poderia levar para longe de Deus ele deve rechaçar; ele deve adorar a Deus, deve servir a Deus, deve louvar, deve dizer a Deus que O ama. É por essa forma que ele tributa glória a Deus.

Porque Deus criou seres diversos, e não apenas um só?

Deus criou. Podia Ele criar uma só criatura para Lhe dar glória? Ou, a criar, teria que criar várias criaturas?

Absolutamente falando, Deus não precisa criar criatura nenhuma, porque Deus não tem necessidade da glória extrínseca que nós lhe damos; ela convém, mas não Lhe é necessária. Mas, a criar, Ele poderia criar uma criatura só? Pode haver uma criatura só que dê suficiente glória extrínseca a Deus?

Esta matéria é muito discutida entre os teólogos. Eu me inclino para a ideia de que nenhuma criatura sozinha, nem mesmo Nossa Senhora em sua indizível perfeição, seria suficiente para dar glória a Deus; e que Deus, a criar, teria que criar várias criaturas, porque Deus é tal que em nenhuma criatura há possibilidade de refletir todas as suas perfeições.

Donde, então, são necessárias muitas criaturas. Quer dizer: a criação necessariamente envolveria muitas criaturas.

O pressuposto que está nessa minha afirmação é que para que a criação dê suficientemente glória a Deus, precisa ser um reflexo amplíssimo d’Ele; não que reflita com toda a propriedade cada um dos atributos d’Ele, mas deve refletir, nas limitações de toda criatura, os atributos d’Ele.

Ora, os atributos d’Ele são tais que uma criatura não os pode conter todos em forma suficiente para refletir.

E então é necessário que haja muitas criaturas.

O conjunto das criaturas forma uma coleção que reflete as perfeições infinitas de Deus

Daí tiramos a conclusão de que toda a criação é uma espécie de coleção, e que Deus criou os seres de maneira que cada ser existente reflita, de um modo inconfundível, um dos atributos d’Ele. De maneira que um atributo d’Ele pode ser refletido por dez milhões de seres, pouco importa; mas cada um reflete, de um modo inconfundível, um aspecto daquele atributo divino.

Por exemplo, o canário reflete certo atributo de Deus; mas imaginemos todos os canários que houve desde o começo do mundo até o fim. Se alguém pudesse considerar a “ordem canária” compreenderia que forma uma coleção em que aquele atributo específico, que o canário apresenta, é desenvolvido e representado de um modo inconfundível por um conjunto enorme de seres, os quais formam uma coleção; que ela, sim, dá o total do quadro desse atributo.

Isso que podemos dizer dos canários, podemos dizer também, por exemplo, dos camarões; nós o podemos dizer de tudo quanto queiram.

Nós o devemos dizer, sobretudo, dos anjos.

A criação angélica foi feita de tal maneira que no seu todo, com as miríades de anjos que há e que são incontáveis, ela dá um quadro total de Deus. E é uma “coleção‑espelho”, em que cada anjo não repete o outro, porque Deus não gagueja.

O homem que tem um defeito de locução, para dizer uma coisa pronuncia duas sílabas, uma das quais é supérflua. Mas Deus não vai, ao fazer o espelho da sua glória, pôr um indivíduo “gago” dentro; quer dizer, um indivíduo que seja um gaguejar, que repita viciosamente o que o outro já diz, o que outro já é.

De maneira que os anjos constituem uma prodigiosa coleção, uma fabulosa coleção, na qual os atributos de Deus estão devidamente espelhados: tronos, dominações, querubins, serafins, potestades, virtudes, simples arcanjos — simples arcanjos!, pobres de nós!, é como quem dissesse: simples imperadores… —, anjos, todos eles são, no total, uma imagem de Deus.

Mas se examinamos as várias ordens angélicas dentro de si, cada uma delas é uma espécie de coleção dentro da coleção; é a representação de um atributo dentro do atributo.

E assim nós poderíamos ir ao infinito, percebendo, então, que a criação angélica não é uma espécie de imensidade dentro da qual nos perdemos, mas é uma imensidade orgânica. São figuras que formam figuras, que formam figuras que formam a Grande Figura. E é a vastidão insondável dos seres celestes criando a imagem perfeita de Deus.

As criaturas refletem “totus sed non totaliter” as perfeições infinitas de Deus

O conjunto da criação não é um reflexo de Deus idêntico a Ele; a criação reflete a Deus “totus sed non totaliter”(1); quer dizer, reflete a Deus no seu vulto geral, mas não possui as perfeições d’Ele, que é uma coisa diferente.

Eu dou um exemplo. Suponhamos um filho sumamente parecido com o pai e que tenha todas as qualidades do pai; reflete o pai, mas não totalmente; porque o filho é da mesma natureza que o pai, ele pode ter os mesmos atributos que o pai, mas não é idêntico ao pai. Assim, nós não refletimos a Deus totalmente, senão nós seríamos deuses.

A criação reflete a Deus como uma figura de espelho reflete a pessoa, para usar um exemplo que não é muito preciso. Quer dizer, o reflexo é apenas uma figura, não é uma pessoa, não tem aquela natureza.

A criação angélica espelhava magnificamente a Deus.

Deus, sendo um abismo infinito de todas as perfeições, por algum lado é sumamente majestoso, mas por outro lado Ele é sumamente gracioso. Há animais que refletem a majestade de Deus, por exemplo, o leão; há animais que refletem algo de indizivelmente gracioso que existe em Deus, por exemplo, o beija‑flor, que já é outro atributo; o trovão reflete, por sua vez, Deus enquanto puniente; o cordeiro reflete Deus enquanto capaz de perdoar, enquanto manso, enquanto pacífico.

Quer dizer, Deus tem um número indizível de atributos, ou seja, de qualidades; cada criatura espelha uma qualidade; o conjunto delas espelha o conjunto das qualidades divinas.

Então no que está a infinitude de Deus? Está em que cada uma dessas perfeições é infinita, ou cada uma dessas qualidades é infinita.

Caso Deus não tivesse criado os homens, Ele receberia uma glória total só dos anjos, como até, a seu modo, Ele recebe dos animais ou das pedras.

A seu modo, cada uma dessas ordens dá uma glória diferente, como dariam várias sinfonias diversas.

A criação é como um conjunto de orquestras que cantam a glória de Deus

Deus ia criar como que várias grandes orquestras diversas: a criação angélica e a criação humana, cada uma cantando as glórias d’Ele a seu modo, cada uma dando a Deus um reflexo total d’Ele; mas também a criação animal, a criação vegetal e a criação mineral, dando, cada uma, reflexos totais d’Ele.

Nós compreendemos, então, para que o homem, o anjo e todos os seres foram criados; compreendemos que a criação realiza sua finalidade cantando a glória de Deus, amando a Deus.

Compreendemos que Deus faz residir a sua glória, não tanto numa só criatura, mas em conjuntos de criaturas, porque o conjunto é melhor do que cada parte.

Então compreendemos a criação do universo.

Estava constituído um todo do qual o Gênesis diz que Deus descansou no sétimo dia, considerando a sua obra. Esse descanso é exatamente a alegria por sentir a criação que Lhe está dando glória, e vendo que cada coisa era boa e o conjunto era ótimo.

É bem a doutrina que estamos dando: o conjunto do universo é magnífico.

O plano doutrinário está tratado.

Continua no próximo número…

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 17/1/1967)

Revista Dr Plinio 159 (Junho de 2011)

 

1) Todo, mas não totalmente.

 

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