Finura no trato e santidade

A civilização cristã, nascida do Preciosíssimo Sangue de Cristo, produziu frutos em abundância. Um deles foi o trato cavalheiresco.

 

Para se entender as relações entre finura no trato e santidade, deve-se compreender bem o que significam trato e finura.

O trato é um conjunto de fórmulas por onde expressamos para com os outros a nossa atitude de espírito, interior. Quer dizer, o trato envolve de fato duas coisas: em primeiro lugar uma conduta e depois maneiras.

Há um modo de tratar que não é apenas feito de maneiras, mas de elevação de espírito. Por exemplo, tratar os outros com benignidade, força, fidelidade, nobreza; isso não é exatamente igual à maneira.

Imaginemos um homem que deve dinheiro a seu amigo. O modo pelo qual esta relação de crédito e débito se desenvolve diz respeito ao trato. O lidar de um com outro em torno de uma situação naturalmente tensiva pode ser mais elevado ou menos, mais generoso ou menos, independente das maneiras de cortesia que nesse trato se empregam.

Os modos de cortesia são as fórmulas, a linguagem, as expressões do rosto, os gestos das mãos, a atitude de toda a pessoa; isso constitui um elemento secundário e extrínseco do trato.

A santidade necessariamente conduz a um trato muito elevado, no sentido fundamental da palavra, ou seja, no seu aspecto profundo. Uma pessoa que é santa — a santidade é a raiz de todo procedimento perfeito — tem em relação aos outros uma conduta e um trato exemplares. Ela trata os outros com toda a distinção, com todo o esmero, respeito, afeto, ou com toda a força e energia que as circunstâncias exigem. Sob esse aspecto, a santidade é co-idêntica com a perfeição no trato.

Onde foi tirado o verdadeiro amor a Deus, não pode haver autêntico amor aos homens

No sentido profano, pode haver pessoas não santas que tratam os outros eximiamente.

Isso ocorre quando há uma grande tradição de civilização católica, a qual não morre de um momento para outro. Embora a moralidade possa cair muito rapidamente, a tradição do trato ainda continua. Usando uma imagem de São Pio X, que ele aplicava a outra coisa, não podemos pôr rosas num jarro sem que este se impregne do perfume e continue perfumado, mesmo depois de serem retiradas as flores.

Assim também, certo cavalheirismo e certa fidalguia de trato, no sentido mais profundo da palavra, podem subsistir como uma tradição católica num ambiente que é pouco católico, ou deixou de ser católico. Por exemplo, alguma coisa da nobreza de trato de certos lordes ainda é uma remota tradição da Inglaterra, proveniente do tempo em que era católica.

Mas essas boas tradições vão morrendo. Um homem pode ser muito elegante no trato, em matéria de negócios comerciais, porém deselegante quanto ao modo de adquirir dinheiro, ou em assunto de adultério, ou qualquer outra matéria. Ele, por exemplo, julgará que é um defeito de trato ir à casa de um amigo e roubar uma colherinha, mas rouba a esposa do amigo.

Quer dizer, são tradições que ficam meio hirtas e têm uma vida artificial. Aos poucos vão minguando e acabam desaparecendo.

Tendo cessado o estado de graça, a finura do trato é como uma trepadeira da qual se corta a raiz. Durante algum tempo algumas flores, que tinham começado a desabrochar, se desabrocham inteiramente. Pode haver, portanto, uma ilusão de vida naquela trepadeira. Mas é uma pós-vida, porque ela morrerá mesmo. Onde foi tirado o verdadeiro amor a Deus, não pode haver autêntico amor aos homens. Não havendo amor a Deus nem amor aos homens, o trato, neste sentido elevado da palavra, evidentemente tem que desaparecer.

Na natureza há símbolos magníficos dessas situações. Contaram-me que em certos cadáveres a barba ainda cresce um pouquinho. É um resto do desenvolvimento vital num corpo que está morto. Assim também pode haver aparente florescimento de maneiras numa civilização já sem vida. Sob certo ponto de vista, podemos dizer que o trato continuou esplêndido, cristão, aristocrático e acidental na Europa até há pouco. Mas era uma coisa defectiva, tendente a cair, o resto de algo magnífico que tinha existido.

A perfeição no trato gera maneiras esplêndidas

Qual a diferença entre trato e maneiras?

As maneiras são fórmulas, gestos, atitudes, que têm muito de natural, mas também alguma coisa de arbitrário, convencional, pelas quais os povos chegam a exprimir, por um consentimento geral, os seus estados de espírito e o seu bom trato.

Os povos podem ser muito virtuosos antes de terem maneiras perfeitas. Têm um trato muito elevado e maneiras apenas corretas, suficientes, às vezes até com um resto de barbárie, não com selvageria; mas algo de trivialidade, banalidade, falta de elegância, pode ser que exista.

Um santo pode, portanto, ter menos boas maneiras do que uma pessoa não santa. As maneiras são elaboradas lentamente pelas civilizações; constituem o produto de toda uma sociedade. E existe sempre a seguinte relação: a perfeição no trato acaba gerando ao longo do tempo maneiras esplêndidas. Estas são uma espécie de fruto remoto do trato. E, portanto, um fruto um pouco mais remoto ainda, da virtude. E vivem necessariamente só da virtude. De maneira que se virtude não houvesse, as maneiras seriam também muitíssimo inferiores. E quando a virtude morre, o trato vai se deformando; as maneiras ainda continuam, porque é uma coisa externa, material, cujo desaparecimento choca mais.

Na França, nas vésperas da Revolução, havia maneiras requintadíssimas, mas já indicando que iriam desaparecer.

O trato decorre, então, necessária e imediatamente das virtudes. As maneiras provêm necessariamente das virtudes porque decorrem do trato, mas não imediatamente quanto às maneiras requintadas, esplêndidas, que são fruto de uma civilização.

É claro que uma pessoa sem virtude pode ter bom trato em alguns pontos, e a “fortiori”(1) boas maneiras. Porém, com o tempo isso desaparecerá.

Como são as maneiras de uma civilização sem Deus?

Para terminar, eu gostaria de dizer apenas o seguinte. O histórico das civilizações, se fosse bem feito, mostraria que as maneiras perfeitas só existiram como fruto da civilização católica; mas não antes. Havia povos cujas aristocracias, sob alguns aspectos, tinham maneiras excelentes e de certa forma até insuperáveis. O povo chinês, por exemplo, e mesmo romanos, gregos etc., debaixo de alguns pontos de vista tinham um direito bom, uma arte, uma cultura, uma literatura boas. Mas nunca com a elevação que as coisas atingiram com a civilização católica.

Fala-se de civilização clássica, romana. Vejamos, porém, como era um banquete em Roma. Os convivas, deitados naqueles triclínios, comiam e bebiam desbragadamente, de um modo indecente, com uma glutonice sem igual, e se embriagavam de tal modo que eram levados para fora da sala. Quando alguém se sentia — a expressão é muito prosaica, mas afinal temos que empregá-la — cheio demais, levantava-se e ia para as salas contíguas, onde havia escravos com a habilidade de provocar, por meio de penas de aves, cócegas no palato; ele, então, restituía tudo o que havia comido e bebido. Depois vinha outro escravo trazendo vasilhas com água; a pessoa lavava as mãos e, se quisesse, secava-as nos cabelos do próprio escravo, que serviam de toalha. O escravo ficava, portanto, todo emporcalhado.

Imaginemos a cena nos seus pormenores. O glutão ou a glutona de bocarra aberta e o escravo fazendo cócegas na garganta: surge a ânsia e, afinal, a explosão gástrica. A pessoa anda de um lado para outro, cambaleia, para com disparos de coração etc. Por fim, equilibra-se o monturo, oscila mais um pouco e volta para comer. E tudo recomeça.

Isto é o horror em matéria de maneiras. Eu poderia citar cem outras coisas em cem espécies de civilizações.

Hoje em dia, quando uma pessoa recebe outra em sua casa, a fórmula polida, o dito elegante, interessante, a atitude rasgada e gentil são substituídos por uma acolhida parda; há uma frieza recíproca, indicando a completa decadência em matéria de trato. Isso tudo é efeito de um desbotamento de alma, o qual tem uma raiz moral; e esta última possui uma causa religiosa.

Em suma, o trato e as maneiras “pocas”(2) são consequências da tibieza.

 

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 18/12/1965)

 

1)   Com maior razão.

2)  Dr. Plinio assim denominava as pessoas ou as coisas inexpressivas, medíocres.

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