Finalidade do homem, segundo o plano de Deus

Na época em que Dr. Plinio presidia a /unta Arquidiocesana da Ação Católica, era tema de debate saber qual a medula da vida espiritual. Tornando-se conveniente esclarecer um sacerdote vinculado àquele movimento, Dr. Plinio redigiu um memorando altamente orientador.  Reproduzimos aqui sua primeira parte; a segunda será transcrita no nosso próximo número.

 

É Deus quem cria e conserva todas as coisas,  por um ato livre de sua vontade onipotente. Assim,  Deus é supremo Senhor de tudo o que existe, governando toda a criação e ordenando-a para a sua glória. Os seres brutos ou inanimados são conduzidos para este fim cega e forçadamente. Os homens, porém, dotados que são de liberdade, são esclarecidos e atraídos por Deus para bem disporem a vontade e alcançarem a glória pela conformidade consciente e ativa com a vontade divina. Cumpre, pois, aos homens procederem segundo esta atração e aquele esclarecimento, para, submetendo-se livre e integralmente às determinações divinas (distinguindo-se preceito de conselho) atingirem o fim para que foram criados. E nisto consiste a perfeição, posto que o homem, como tudo o que subsiste e acontece, não tem outra realidade senão a que lhe é dada, a cada momento, por Deus. Desta forma, aquilo que depende da vontade humana deve ser posto em correspondência com os desígnios divinos, para que o homem possa conseguir a sua própria plenitude e perfeita realidade. O contrário seria frustrar a generosidade de Deus, que nos dá a existência, a vida, e a dignidade de participarmos conscientemente em sua obra pela liberdade, que nos outorgou, e que nunca deixa de respeitar.

Ordem e harmonia no homem antes do pecado original

O homem, criado por Deus no estado de justiça original, fora enriquecido da graça santificante e de outros valiosos dons que davam à sua natureza harmonia tal que ele via claramente a vontade de Deus e a cumpria com toda a facilidade, seguindo apenas os seus pendores espontâneos. A lei natural, que é a lei que Deus inscreve na consciência de cada um, como manifestação de sua vontade, era perfeitamente legível; é por isso que os nossos primeiros pais tinham as potências da alma em perfeita ordem, de tal forma esclarecida pela revelação, que a sensibilidade estava subordinada inteiramente à vontade, e esta à inteligência, a prática da lei não era penosa, mas era uma fonte de felicidade, pois tudo cooperava no homem para que ele atingisse plenamente seu fim.

Castigo do homem decaído

Entretanto, pelo pecado original foi quebrada esta harmonia tão maravilhosa. Como castigo da rebelião, retirou Deus o poder absoluto da inteligência sobre a vontade e de ambas sobre a sensibilidade, e assim o homem se viu em luta contra a rebelião ora brutal das paixões, ora insidiosa das más inclinações, tornando-se tantas vezes escravo de umas e de outras. Igualmente perdeu o domínio absoluto sobre a natureza criada, de que fora o rei, e os seres animados e inanimados, que a compõem, revoltaram-se contra ele, quebrando-se assim, aquela harmonia que resultava da subordinação do mundo, com suas forças e virtualidades, à inteligência superior do homem. A lei natural perdeu, na consciência humana, a primitiva nitidez; a inteligência ficou alterada em sua lucidez cristalina de outrora; e a vontade desviou-se daquela retidão admirável, que a inclinava sempre para o verdadeiro bem. Sobretudo, perdeu o homem a graça e a amizade de Deus, e o Céu se fechou para ele.

O pecado original, pela contradição abominável que opunha à majestade divina, fez entrar a contradição no mundo. O tédio, o cuidado, a dor, a angústia e a morte se desdobraram sobre a terra; e o inferno se abriu, como suprema contradição, para triturar, sem aniquilar, os prevaricadores, que se tornaram filhos da contradição do pecado. Por outro lado, o desejo de felicidade, que é tão radical no homem que seria mais fácil destruir o ser humano do que extirpá-lo, este desejo voltou-se com todo o seu peso para muitas coisas que não podem dar a felicidade. E os caminhos que conduzem à bem-aventurança, tão sequiosamente almejada pelo coração humano, tornaram-se espinhosos e repugnantes, de tal forma que “todo o que procurar salvar a sua vida, perdê-la-á; e todo o que a perder, salvá-laá” (Lc. 27, 33).

A vida espiritual, depois do pecado original

Nesta situação aflitiva, valeu-lhe a misericórdia de Deus, que não poupou o seu próprio Filho, imolando-o na Cruz pela nossa salvação. Entretanto, a graça, que tão abundantemente defluiu do Calvário, não alterou o quadro das conseqüências do pecado original no homem, senão nesse ponto: que valorizou e tornou viável o esforço humano em vista da recomposição da harmonia interior e da subordinação da vontade à Vontade Divina, e, por aí, reconquistarmos o Céu. Ora, estando comprometidos, em nossa [consciência], os traços anteriormente firmes, com que estava gravada a lei natural, dignou-se Deus de manifestar novamente a sua vontade pela revelação dos Mandamentos, que se aplicam a todos os homens, indistintamente. Além disso, pelos conselhos evangélicos, revelou o que cada um deve fazer, em particular, seguindo a inspiração do Espírito Santo, para obedecer aos desígnios de Deus a seu respeito. A vida espiritual consiste exatamente nesse esforço penoso por conformar nossas disposições internas e nossas ações com a vontade de Deus, o que, antes do pecado original, era uma fonte de felicidade, como já ficou visto.

Disposições do homem concebido no pecado original

Há, no homem, tendências boas ou más da natureza, disposições viciosas ou virtuosas adquiridas, e atos bons ou maus, que seguem as tendências ou as disposições. É de se notar que as disposições virtuosas podem ser o aproveitamento meritório de uma boa tendência, como as viciosas podem ser o agravamento culposo de tendências más. É possível, porém, que não seja assim, havendo, neste caso, maior culpa ou mérito.

As tendências más podem pertencer à vontade, como a tendência para o orgulho, por exemplo, ou à sensibilidade, como a tendência para a luxúria. Para que haja ato mau, entretanto, é necessário que a vontade ou ceda à própria inclinação defeituosa, ou pactue com os movimentos inferiores da sensibilidade desordenada, como que os assimilando a si própria. A repetição de atos

maus vai desenvolvendo as tendências más da vontade, vai aumentando a desordem da sensibilidade, e, por fim, vai habituando a vontade a transigir com as sugestões perversas desta última, até surgirem os vícios, em toda a pujança escravizadora.

Este proceder imoral tem ainda um último e derradeiro fruto de iniqüidade. A vontade não pode agir sem a colaboração da inteligência, pois que a ação humana não se produz sem uma razão. De fato, ninguém faz alguma coisa conscientemente sem um motivo apresentado pela razão, qualquer que seja seu valor. Portanto, o mau proceder conspurca a inteligência, pois chega a forçar esta nobre faculdade muitas vezes a apresentar como bom e conveniente o que é mau e perverso. Ora, esta intervenção violenta, quando muitas vezes renovada, acaba por deformar a inteligência, que de si mesma é generalizadora; e por aí ela pode obliterar-se de tal modo que só muito penosamente chegue a compreender certas verdades e a se desvencilhar-se de certos erros. A pessoa que assim deforma a sua inteligência concebe ideias ou teorias falsas, ou, ainda, adquire uma mentalidade, isto é, uma atitude fundamental de ver e julgar as coisas, que falseia todos os valores. Numa mentalidade há princípios e teorias implícitos, que podem nunca vir a ser explicitados, mas que freqüentemente pesam nos juízos e nas resoluções. Por isso, nada há tão perigoso como uma mentalidade deformada, pois nisso consiste o “desregramento do espirito” de que fala o Evangelho (Mc 7, 22). É o oposto da Sabedoria e, no fundo, é o gosto das coisas do mundo, que se opõe ao gosto das coisas celestiais.

Esta mentalidade defeituosa também pode ser contraída pela complacência íntima e sistemática com os atos maus de outras pessoas, atos estes que lisonjeiam as nossas más tendências e disposições. A causa é análoga à referida quanto aos nossos próprios atos.

As más tendências da natureza, conseqüência do pecado original, são o princípio do mal em nós, e quase sempre o ponto atingido pelas tentações do demônio e do mundo. Podem ser dominadas, com relativa facilidade. A disposição viciosa, pelo contrário, já representa o domínio do mal; e a prática do bem, que se lhe opõe, exige uma grande luta. Porém, a pessoa portadora de mentalidade deformada já não luta, pratica o mal, que se refere ao defeito de sua mentalidade, como se fora a mais natural e racional das coisas.

Deve-se aplicar esta distinção de tendência, disposição e atos a cada um dos Mandamentos de Deus e da Igreja, conforme ao que ficou dito.

Observar, julgar e corrigir as tendências desregradas

Diz o Santo Padre Pio IX, em sua Encíclica sobre os Exercícios Espirituais de Santo Inácio: “O mal gravíssimo de que enferma a nossa época, que é a fonte e origem de todos os males de que se queixam os homens de reto juízo, é a falta de reflexão”. Para curar este mal é necessário forçar “o nosso espírito a observar atentamente os pensamentos, as palavras e as ações e a penetrar intimamente na nossa alma”.

De fato, infelizmente é enorme, hoje em dia, o número das pessoas que moldam a sua atividade exclusivamente ao sabor das circunstâncias exteriores, e não têm o hábito, e quase nem têm a faculdade de se observar, de julgar-se a si próprias e de corrigir as suas tendências e disposições interiores desregradas.

Condições para obter a conformidade com a vontade divina

Entretanto, a ninguém é possível obter uma verdadeira conformidade com a vontade divina, que é o único meio de o homem atingir a perfeição e a felicidade, sem o hábito de ver, julgar e agir dentro de si mesmo. Conforme se viu da Encíclica anteriormente citada, disso depende a cura de todos os males modernos. Ora, o mal não é outra coisa senão a disconformidade com a vontade divina, que jamais deixa de querer o verdadeiro bem.

Além disso, as pessoas que se deixam levar exclusivamente, ou quase, pelos atos exteriores, se expõem a contaminar-se, insidiosamente, pela corrupção do mundo, que é o principado de Satanás (Jo. 16, 11), e a cair na chamada “heresia das obras”, mesmo quando querem fazer o bem. Neste sentido, acrescenta a Encíclica citada: “A frivolidade contínua e febril que se prende às coisas exteriores… enerva e debilita nos corações os mais nobres ideais e de tal modo os envolve nas coisas terrenas e transitórias que mal os deixa pensar nas verdades eternas, nas leis divinas e no próprio Deus, que é o único princípio e fim das criaturas”.

Porém, o hábito salutar de ver, julgar e agir dentro de si mesmo, fornece “um auxílio eficaz para as faculdades humanas, de modo que, neste combate insigne do espírito, a mente se acostuma a avaliar e a pesar, no seu justo valor, todas as coisas; a vontade se robustece com firmeza; os desejos insaciáveis comprimem-se com sensatos conselhos; a ação da vida humana, unida à meditação, conforma-se com uma norma reta; enfim, a alma atinge a sua nobreza e excelência, como se lê tão belamente numa comparação do livro Pastoral do pontífice São Gregório: ‘O espirito humano, à semelhança da água de um tanque, se a fecham, aumenta e sobe para o Céu, donde veio; mas, abandonada, perde-se, espalhando-se inutilmente sobre a terra’.”

Assim sendo, nesse hábito está a medula da vida espiritual.

 

Plinio Corrêa de Oliveira

Revista Dr Plinio 37 (Abril de 2001)

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *