Dor e glória

Em Nosso Senhor Jesus Cristo o que mais atraía Dr. Plinio era seu sofrimento, com o matiz de majestade, de sabedoria profunda, de transcendência em relação a tudo, com uma bondade que  chega até o último ser.

Passemos à consideração da Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo, com base em um bonito Crucifixo.

Dor, majestade, paz e misericórdia

A meu ver a fotografia faz ver uma beleza do Crucifixo — porque a fotografia não pode inventar —, mas que só um olhar muito atilado de um bom crítico de arte percebe. Arte só, não, piedade. Como o estado de alma de Nosso Senhor no alto da Cruz está bem interpretado!

Os dois pontos da escultura em que mais o trabalho artístico e a expressão se aprimoram são: os lábios abertos, os dentes separados ligeiramente, dando a ideia, também levemente, do queixo caído; depois, os olhos que fitam, triste e desoladamente, alguma coisa que eles estão contemplando, mas não estão vendo.

O olhar está distante, na consideração de algo muito diverso que o enche de tristeza. O queixo, assim ligeiramente caído, dá a impressão de tal abandono das forças, que não há mais vigor nem sequer para manter cerrados os lábios.

Contudo, apesar do extremo dessa dor moral, mais do que física — de fato, Nosso Senhor sofreu mais a Alma do que no Corpo durante a sua Paixão —, nós notamos uma paz, uma misericórdia, uma delicadeza de sentimentos, em que o furor não está presente. A tristeza, sim, está em tudo e por tudo. Mas uma tristeza tal que, Esse condenado à morte, privado dos trajes que qualquer passante possui, entretanto tem uma atitude que deixa longe a majestade de qualquer rei!

O artista soube muito bem representar os cabelos de Nosso Senhor, não penteados direito — porque isso não teria propósito depois de tudo quanto Ele sofreu —, mas lindamente desgrenhados, de maneira a formarem cachos lindíssimos! A barba é tão pequena que não daria jeito para pô- -la revolta. Então, ela cai ordenadamente para emoldurar o rosto.

Nosso Senhor chorou também a decadência das nações católicas

A pessoa que contempla essa imagem tem quase a impressão de que entrará, de um momento para outro, no campo de visão desse olhar. O aspecto de tristeza é pungente.

Durante sua Paixão e Morte, Nosso Senhor Jesus Cristo previa tudo quanto iria acontecer até o fim do mundo, como a humanidade tomaria aquele sacrifício extraordinário, único, realizado por  Ele; gemia e sofria por todas as ingratidões que os homens teriam para com Ele. De vez em quando, o horizonte da História era cortado, diante de seus olhos proféticos, por esta ou aquela figura, este ou aquele Santo, esta ou aquela Ordem religiosa, esta ou aquela escola de pensamento, esta ou aquela Cruzada cheia de fervor.

E o Divino Redentor sentia-Se confortado em meio a sua dor. Isso não O terá ajudado a carregar a Cruz e a sofrer sua Paixão até o último alento, até o último ponto em que Ele disse: “Meu Deus,  meu Deus, por que Me abandonaste?” (Mt 27, 46).

Podemos ter certeza de uma coisa: em determinado momento, Ele chorou a decadência das nações católicas do Ocidente. Tudo quanto nos causa horror nos dias de hoje, que repulsa terá provocado à santidade infinita do próprio Deus?

Percebem-se os grandes espinhos que transpassaram a fronte de Nosso Senhor. No alto do olho esquerdo nota-se uma machucadura terrível. Tem-se a impressão de que um espinho esteve lá e caiu, deixando um ferimento medonho.

Vejam com quanta delicadeza escorre o Sangue ao longo do Corpo Divino, de maneira a formar dois longos filetes, na ponta de cada um dos quais está um rubi!

O primeiro canonizado da História

A impressão de desolação e de desamparo é muito acentuada nesta fotografia. É uma dor de quem sabe não ter remédio, nem limite, e caminha para a morte que se anuncia, não com as  consolações de quem está esperando o Céu, mas na tristeza do que vai acontecer, porque Ele percebe a maldade dos homens que estão se jogando contra Ele.

Podemos imaginar a diferença entre essa fisionomia e a que deve ter feito o bom ladrão, no momento em que ouviu Nosso Senhor lhe dizer: “Hoje estarás comigo no Paraíso” (Lc 23, 43).

Ao dizer ao bom ladrão que ele estaria no Paraíso, Jesus afirmava, antes de tudo, que Ele estaria lá, e o ladrão se encontraria com  Ele. O bom ladrão foi o primeiro canonizado na história das  canonizações; teve ali o Céu garantido.

Por que Nosso Senhor disse isso a ele? O bom ladrão pediu perdão e Jesus o perdoou. Mas na hora de perdoá-lo o Redentor quis dar-lhe essa alegria, para ele transpor com ânimo os terríveis  umbrais da morte.

Ora, essa alegria não se nota neste semblante. Alguém dirá: “Dr. Plinio, não há uma contradição?” Não. Jesus quis beber a taça da dor até o fim, sofrer tudo quanto era possível sofrer. Ao outro Ele  deu uma alegria no momento do passo final. Nosso Senhor entrou triste na hora de sua Morte, mas logo depois Ele teve, naturalmente, a alegria em que sua Alma santíssima, hipostaticamente unida à Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, deixava de sofrer as dores do Corpo. Começava o período em que Ele ia ao Limbo para encontrar todas as almas que estavam lá e levá-las para o Céu.

A boa tristeza e a má alegria

Nesse semblante a desolação parece tão profunda que se tem a impressão de não tardar para sobrevir a morte. A desolação moral é maior do que a física. Dir-se-ia ser uma longa meditação que vai chegando às suas últimas e mais amargas consequências.

Os autores que comentam a construção das grandes catedrais da Idade Média observam que elas são construídas na consideração da glória de Cristo Ressurrecto. E que a ideia da alegria e da vitória d’Ele encheu de luz a piedade dos medievais.

É verdade que, quando a Idade Média começava talvez a entrar no seu declínio — é difícil precisar —, iniciou-se um movimento extraordinário de devoção a Nosso Senhor Jesus Cristo crucificado.

Esse movimento foi se difundindo por São Francisco de Assis com os estigmas, etc. Mas o que a Idade Média deixou de mais característico foi Cristo Ressurrecto.

Entretanto, desde menino, o que mais me impressionou foi Jesus Cristo na sua dor. Estivesse Ele crucificado ou não; numa atitude como o Sagrado Coração de Jesus, mostrando seu Coração aos  homens e dirigindo- -Se a eles; ou em qualquer outro episódio  de sua vida, como naquele conjunto escultural da Igreja do Sagrado Coração de Jesus que O representa entre os doutores no  Templo, etc.; o que sempre me atraiu mais para considerar e adorar foi a Ele enquanto, naquele determinado episódio, sofrendo.

E dando ao seu sofrimento aquele matiz de majestade, de sabedoria profunda, de transcendência em relação a tudo, mas de bondade que chega até o último ser, o último verme,  o último pecador  que se coloque diante d’Ele. Isto foi o que sempre, de modo muitíssimo especial, atraiu- -me n’Ele e me levou a adorá-Lo. Não custei a perceber que essa disposição de minha alma estava em contraste diametralmente com a alegria de fandango que dominava a minha época de menino, com a difusão de toda a atmosfera de Hollywood, de todo o ambiente do cinema moderno, criando  um clima de alegria artificial, doida, tonta, agitada, sedenta de pecado e já meio imersa no pecado, que caracterizava o meu tempo de infância. Então, era uma alegria má. E eu ficava colocado  entre a boa tristeza e a má alegria.

Eu não sabia discernir bem entre a boa e a má alegria, e me parecia que havia no mundo duas correntes, considerado o mundo do ponto de vista psicológico: uma era a dos que amavam a dor e  que, portanto, adoravam a Nosso Senhor; e a outra a dos que amavam a alegria e eram os partidários do cinema. E isso formava uma contradição que eu não sabia explicar inteiramente.

Porém, eu era levado a um equívoco de ponto de vista, segundo o qual toda pessoa alegre era suspeita de certa adesão ao fandango cinematográfico, que ia arrastando tantas e tantas almas para o  pecado. Pelo contrário, a pessoa triste eu considerava que estava sempre no caminho certo, pelo menos para se converter, se não era uma pessoa inteiramente virtuosa.

Levei anos para perceber que aqueles que estão tristes com Nosso Senhor são os alegres desta vida, e aqueles que estão alegres com satanás são os tristes desta vida.

Tristeza digna, nobre, varonil

Sempre me pareceu que, apesar disso ser verdadeiro, por estarmos nesta época de tanto pecado e  tanta ignomínia — que determinou  a mensagem de Fátima com tudo o que ela contém —, o  autêntico católico poderia ter sua alma alegre, estaria bem, mas essa alegria nunca deixaria de ter um véu de tristeza digna, nobre, varonil, como quem acompanha Nosso Senhor até o alto da Cruz.

Observando as cerimônias religiosas daquele tempo, eu notava isto: mesmo nas cerimônias mais gaudiosas estava presente um traço de dor, certa compaixão a qual tinha por objeto a Nosso  Senhor Jesus Cristo. Inclusive na festa mais límpida, mais alegre, mais desanuviada, o  Natal, havia uma nota de tristeza, de compaixão do Menino que nasce tão pequenino, no frio, deitado na  mera palha, e que vem começar sua longa jornada na Terra… Essa nota de compaixão perpassava as alegrias luminosas  e magníficas do Natal.

Na própria Páscoa da Ressurreição, Nosso Senhor é apresentado ressurrecto, mas com suas chagas brilhando.

As chagas lembram tudo aquilo pelo que Ele passou. Quer dizer, uma reminiscência da dor, da Cruz sempre presente, de um modo ou de outro, numa cerimônia católica. Foi por essa razão  também que eu quis sempre ter a cruz nas nossas sedes: cruzeiros pretos, altos, secos, como foi negra e sem consolações a Paixão de Nosso Senhor. E dois magníficos crucifixos na Sede do Reino  de Maria, um dos quais acabamos de comentar. Assim me veio a ideia de ser esta a posição natural da alma do católico.

Daí nasce a seguinte convicção: a vida, para ser tomada catolicamente, tem que levar consigo esse traço de grandeza e de seriedade, sem o qual ela não vale nada. A vida é uma participação na Cruz  e Nosso Senhor Jesus Cristo. Eu tenho que sofrer como Ele sofreu. E quanto mais eu padecer, tanto melhor será, porque terei tido maior honra de me achegar mais a Ele.

E, diante do sofrimento, adestrar a nossa sensibilidade. Não para fugir, não para rogar incondicionalmente a Nossa Senhora que afaste de nós a dor. Pedir pode-se. Ele mesmo pediu: “Se for  possível, afastai de Mim este cálice”. Mas Ele acrescentou: “faça-se a vossa vontade e não a minha” (cf. Lc 22,42).

Assim nós devemos olhar para a dor que nos espreita no caminho: “Se for possível, afastai de mim este cálice; se não for possível, faça-se a vossa vontade e não a minha”. E estar com a alma  preparada e temperada para, a qualquer momento, com paz, com varonilidade e, sobretudo, com espírito de Fé suportar qualquer dor: a mais inopinada, a mais injusta, a que abalaria mais nosso   princípio axiológico. Seja lá o que for, aguentar, porque foi assim que Ele sofreu.

Que Nossa Senhora nos ajude a ter essas reflexões bem no fundo de nossas almas.

Penetramos nos tempos cujo dia seguinte nós não conhecemos. Espreitar-nos-á a dor? Talvez! Se nos espreitar a dor, nos espreita a glória. Vamos para a frente!

Plinio Corrêa de Oliveira (Extraído de conferência de 21/8/1985)

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