Balduíno IV, o protótipo do católico – II

Balduíno, agonizante, foi de liteira enfrentar Saladino, que se retirou. Talvez essa vitória tenha sido, sob algum aspecto, mais bonita do que a alcançada pelo rei leproso quando rezou com o rosto na areia. Nesta ele comoveu o Céu, inclinando-se no deserto; naquela, impôs respeito ao Inferno, fazendo com que o famoso guerreiro maometano fugisse. É a glória de um homem na Terra, à espera da glória no Céu.

 

Imaginemo-nos na situação dos soldados de Balduíno IV que combateram na batalha de Montgisard(1), revestidos de armamentos, marchando ou cavalgando às ordens desse rei, e pensando o seguinte:

Epopeia comparável aos episódios sacratíssimos da vida de São Luís

“Do outro lado está o Sultão Saladino, muito famoso, riquíssimo, cercado de todo o fausto do Oriente – o nome dele retumbava por todas aquelas zonas como o de um grande guerreiro –, um homem válido, sadio. Nós não somos senão trezentos, e o nosso rei o que é? Um miserável leproso, um pobre super doente, desfeito em chagas e purulências. E a Providência nos chamou para combater, sob as ordens de um desprezível leproso, todo o exército de Saladino!”

Não é verdade que poderia dar insegurança monumental? O que deveria ter sido esse Balduíno para, sozinho, dar segurança aos trezentos homens! Que canal, que veículo do Espírito Santo! Mais bonito ainda do que pensar em trezentos guerreiros é cogitar em trezentos soldados pernibambos… E o rei, leproso, que se prostra no chão e pede a Nosso Senhor, por meio de Nossa Senhora, força para os seus pernibambos. Ali, de fato, nada é forte a não ser a alma dele; mas esta o era por inteiro! Mais sublime não pode ser.

Eu pergunto: na história das monarquias católicas, há um episódio mais bonito do que esse? Não há. Nem os episódios sacratíssimos da vida de São Luís excedem a esse em beleza. Igualam sim, mas não excedem. É uma verdadeira maravilha!

Eis a epopeia que a História da Idade Média, vista assim, nos apresenta. Continua o autor(2).

No ano seguinte, Balduíno edificou no Gué de Jacob a fortaleza destinada a defender a Galileia dos ataques de Damasco.

Gué é um vale por onde Jacó teria passado. Como é bonita a figura desse rei que vai se desagregando, mas constrói fortalezas. Ele, ao contrário de uma fortaleza que se edifica, é um esboroamento vivo, a cada instante. Mas ele ainda constrói fortaleza para lutar no futuro.

Guilherme de Tiro pretende que isso tenha sido feito pelas permanentes solicitações de Odon de Saint-Amand, Grão Mestre do Templo. Em todo caso, qualquer que tenha sido o inspirador da ideia, não há dúvida quanto à importância estratégica da fortaleza que Balduíno mandou construir.

Um senhor feudal revolta-se contra Balduíno IV

Em 1179, Saladino invadiu a Galileia. Balduíno foi a seu encontro, tentando surpreendê-lo, como tinha feito em Montgisard. Mas, como os muçulmanos não se deixaram surpreender, o jovem rei foi cercado. Muitos foram mortos e presos nesse dia.

Pouco tempo depois, Saladino tomou o Gué de Jacó e mandou executar todos os cavaleiros do Templo que a defendiam.

Sybilla, irmã do rei, acabava de se casar – contrariamente aos interesses do Estado – com Guy de Lusignan, homem de beleza discutível, sem fortuna e sem talento. Balduíno, pressionado pelos seus, minado pela doença, havia consentido nessa união e doado a Lusignan os condados de Jafa e Ascalon.

Tão logo se manifestou a insignificância do marido de Sybilla, atiçaram-se as esperanças dos senhores feudais. Contava-se que o irmão de Lusignan, comentando o casamento, disse: “Se Guy for rei, eu deveria ser deus”.

Nessa mesma ocasião, Isabel de Jerusalém desposava Humphrey de Toron, filho indigno de seu pai, o extinto Condestável de Jerusalém, morto em defesa do rei. O estado de Balduíno IV piorava dia a dia. Foi uma provação para sua mãe, que não tinha boa fama, e para a roda de seus cortesões, ambiciosos e amorais, ver a aproximação de Balduíno com Raimundo de Trípoli, único homem capaz de aconselhá-lo devidamente.

Nesse momento reapareceu, libertado dos cárceres muçulmanos, o antigo Príncipe de Antioquia, Renaud de Châtillon. Este logo começou suas aventuras, assaltando uma importante caravana de peregrinos com destino a Meca.

Tal ato rompia a trégua assinada por Balduíno IV e Saladino, ofendia as convicções religiosas dos muçulmanos, a cujos olhos o atentado afigurava-se monstruoso. Intimado pelo rei a devolver os prisioneiros e o produto da pilhagem, ele recusou-se com arrogância, tornando assim evidente a incapacidade do doente de se fazer obedecer.

Portanto, esse senhor feudal revoltou-se contra o rei. Balduíno deu-lhe ordem de restituir o que tinha tirado aos muçulmanos, e ele não quis. O estado de doença de Balduíno não lhe permitia, naquele momento, manter a autoridade necessária.

Dirigia-se às batalhas, carregado em liteira

Em agosto, o infatigável maometano Saladino tentou tomar Beirute por uma ação combinada por terra e mar. Uma vez mais, Balduíno afastou o perigo.

Então, caminhando para a morte, ele combateu e venceu.

Impediu Saladino de se apoderar de Alepo e conduziu uma expedição até os subúrbios de Damasco.

Que era a capital de Saladino.

Assim, por toda parte, graças à sua energia sobre-humana, e ainda que daí em diante ele se fizesse carregar em liteira para as batalhas, o heroico leproso levava vantagem sobre o genial muçulmano.

Considerem um rei que não pode mais cavalgar e é levado em liteira para as batalhas, mas que vai animando os seus. Vejam, mais uma vez, a força de alma que renasce, enquanto o corpo cada vez decai mais.

Ele começava, entretanto, a perder a vista, a não poder mais se servir de seus membros. Os que lhe eram mais chegados o pressionavam a abandonar seus afazeres do reinado, e ao mesmo tempo passar parte de suas responsabilidades a Guy de Lusignan.

Pode-se bem imaginar o drama interior desse rei, com apenas 22 anos, corroído por úlceras, semi paralisado e quase cego, cercado pelas sombras da desconfiança e dos maus pressentimentos, atormentado ante as insinuações e sugestões pérfidas dos seus, de um lado, e a alta ideia que fazia de sua missão de rei, de outro lado. Se a lepra o enfraquecia e ele não podia ter esperanças de se curar, sempre, entretanto, encontrava novas forças e resistia da melhor forma às ciladas da camarilha.

É o período de ascensão máxima dele: cada vez mais cercado, ele vai resistindo à camarilha, crescendo em energia.

Pedido de socorro ao Ocidente

Como a doença entrava numa fase evolutiva, ele devia lutar contra ela e, sobretudo, contra a tentação de abandonar tudo para morrer em paz.

Foi num desses períodos que ele consentiu, se bem que a contragosto, a investir Guy de Lusignan na regência do reino.

No primeiro encontro com Saladino, Lusignan deixou o exército franco ser massacrado. Recusou com altivez prestar contas a Balduíno, que o destituiu de seu cargo. E para evitar que, pela complacência de Sybilla, Lusignan se tornasse Rei de Jerusalém após sua morte, ele designou seu sucessor: o pequeno Balduíno V, filho de Guilherme Longue Épée.

Ele ainda teve, portanto, um gesto de suprema coragem e energia: vendo que o cunhado não prestava mesmo, destituiu-o da sucessão do reino.

Como a situação da Terra Santa estivesse desesperadora, Balduíno mandou uma embaixada ao Ocidente, composta pelo Patriarca de Jerusalém, pelo Mestre dos Hospitalários e pelo Mestre dos Templários, o velho Arnaud de Torrage.

Era um pedido de socorro ao Ocidente, para ver se mandavam gente limpa e boa para salvar a cidade de Jerusalém.

Agonizante, Balduíno enfrenta Saladino e o derrota

Renaud de Châtillon, que indiretamente tinha ajudado o rei a se desembaraçar de Lusignan, julgou-se autorizado a retomar suas pilhagens, mas agora então na mais alta escala.

Armou uma frota, que foi transportada ao Mar Vermelho em dorso de camelo. Essa frota, devastando portos, interceptando comboios, ameaçou por algum tempo o caminho para Meca.

Saladino, excitado até o cúmulo do furor, destruiu os navios de Renaud e depois sitiou-o em sua própria fortaleza, o Krak de Moab. Balduíno IV apareceu, agonizando em sua liteira, para lhe fazer frente. Saladino então retirou-se.

O Mar Vermelho era cheio de sultanatos e de pequenos Estados riquíssimos. Renaud de Châtillon fez transportar os seus navios, a dorso de camelo, pelo istmo de Suez – o canal naturalmente não existia, só foi aberto no século XIX –, entrou no Mar Vermelho e começou a saquear. Saladino ficou indignado. Balduíno, agonizante, foi de liteira enfrentá-lo. Saladino se retirou. Talvez tenha sido uma vitória, sob algum aspecto, mais bonita do que aquela quando ele rezou com o rosto no chão. Na primeira vitória, ele comoveu o Céu, inclinando-se no deserto; na segunda, impôs respeito ao Inferno, fazendo com que Saladino se retirasse. É a glória de um homem na Terra, à espera da glória no Céu.

O último ato de Balduíno IV foi o de reunir em São João d’Acre o Parlamento de seus barões. Guy de Lusignan, incapaz e rebelde, foi então oficialmente afastado do trono. E a regência foi confiada a Raimundo de Trípoli.

O que era de justiça e sabedoria, porque ele designou um menino para ser seu sucessor, e tinha o direito de nomear o regente. Balduíno chamou então seu conselheiro fiel e designou-o como regente. Vê-se o golpe pelo qual ele não nomeou Guilherme, o Longa Espada, para rei, mas sim o menino. Assim, Balduíno pôde chamar seu conselheiro fiel e passar-lhe o bastão de mando, antes de morrer.

Mais tarde, a 16 de março de 1185, o mártir rendeu sua alma a Deus, em presença de seus vassalos, dignatários e bons companheiros de guerra. Até os infiéis lhe tributaram homenagens.

Pedir a esse herói que nos obtenha a força de alma indomável

Entretanto, os católicos o esqueceram…  Em 1972, ele é lembrado num auditório cheio de pessoas de um continente naquele tempo habitado pelos guaranis, araucanos, tupis, etc. Aqui está um eco da glória de Balduíno IV, Rei de Jerusalém.

Esse é um fulgor da Idade Média. Não sei o que aconteceu, mas uma figura assim não foi dada mais à Cristandade. Esse exemplo impressionante do rei leproso e herói, diante de cujas feridas recuam, cheios de reverência, os filhos das trevas, não nos foi dado depois.

Alguém poderá objetar: “Dr. Plinio, o seu entusiasmo por Balduíno IV é como se ele tivesse sido santo. Mas o senhor não pode ter os olhos fechados para o fato de que esse homem teve fraquezas na vida, como o senhor mesmo observou nessa narração histórica. Como o senhor pode ter tanto entusiasmo por esse personagem?”

A vida tem me mostrado poder haver pessoas com algumas qualidades, mas que, sob o peso de provações muito grandes, embora com culpa, apresentam deflexões, mas a graça depois perdoa, reanima e leva de novo a altos cumes.

Essa foi a história, chagada e dolorosa, de Balduíno IV. Ele teve desfalecimentos, é verdade. Não como Nosso Senhor caiu debaixo da Cruz – perfeito, impecável, divino –, mas como um homem que teve fraquezas, e recebeu graças para não tê-las. Essas fraquezas devem ser julgadas com severidade. Mas os atos maravilhosos de sua vida também precisam ser, por isso mesmo, julgados com a mesma justiça. E esses impõem admiração, como as fraquezas exigem a severidade. Sobretudo, para que esse homem tivesse realizado o último lance de afugentar e impor respeito a Saladino naquelas condições, era preciso que a sua alma estivesse em muito belo estado.

Ele foi ocasião, como uma relíquia viva, para um dos mais bonitos episódios da História das Cruzadas. Como não admitir que a alma desse homem, num grau mais alto ou menos, esteja na presença de Deus? Nós não podemos canonizar ninguém, pois este é um privilégio único e exclusivo da hierarquia católica, mais especialmente do Papa. Porém, podemos pedir privadamente a esse herói que nos conquiste essa força de alma indomável. Que ele nos faça compreender algo desse espírito medieval, do qual ele era dotado em tão alto grau, e que é a luz que nos deve animar no caminho ao Reino de Maria.

Aqui está a grande recordação purulenta, fétida, chagada e maravilhosa de Balduíno IV. Mais do que isso, de Nosso Senhor Jesus Cristo no alto da Cruz, pensando em nós, em nossa meditação, abençoando-nos e nos perdoando por todos os defeitos que haja em nossas almas.

Nós nos compadecemos de Balduíno e, sobretudo, d’Ele. Que ambos tenham piedade de nós!

(Continua no próximo número)

 

Plinio  Corrêa de Oliveira  (Extraído de conferência de 21/10/1972)

 

1) Cf. Revista Dr. Plinio, n. 245, p. 18.

2) Cf. BORDONOVE, Georges. Les Templiers. Paris: Librairie Athème Fayard, 1977, p. 111-115.

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